Tempo de leitura: 25-12-2022 a 01-01-2023
Ficha de leitura
Título: SECRET DE FAMILLE À VERDUN[1] (SEGREDO DE FAMÍLIA EM VERDUN)
Autor: Patrick-Serge Boutsindi
Edição: Feuillage ©
Coleção: –
Ano de publicação: 2022
Género literário: Romance
Número de páginas: 249
Resumo: Patrick-Serge Boutsindi é romancista, contista e igualmente autor de ensaios e contos para crianças, originário do Congo-Brazzaville (República do Congo) e vive atualmente em França, no departamento (província) da Mosela. Tive a ocasião de ler vários dos seus contos ilustrados para crianças, nomeadamente La Fête de Ya foufou[2] e L’École de Ya foufou[3] antes de descobrir Le Mbongui [4] (novelas) e Le voyage d’un Africain en Lorraine[5], outro romance cujo sugestivo título ─ e conteúdo ─ se tornaram uma espécie de ponte de comunicação entre nós, sendo eu própria uma ex-estudante estrangeira africana na Lorena.
Descobri este autor quando procurava livros de autores francófonos para crianças, com a finalidade de conhecer os seus escritos e depois divulgá-los junto dos pequenos leitores e famílias francófonas e lusófonas. Encontrei o seu nome no site da l’Harmattan e referências ao trabalho de Patrick-Serge Boutsindi em várias lojas online, distribuidores, blogues literários e livrarias.
Não sendo especialista deste autor (apenas uma leitora recente, mas cada vez mais atenta), estou, no entanto, convencida de que Boutsindi é um escritor muito eclético e flexível, porque se expressa com a mesma facilidade e eficiência narrativa tanto para os mais novos como para todos outros tipos de leitores. SECRET DE FAMILLE À VERDUN vem, sem dúvida, confirmar, essa competência.
E do que trata o livro? Segundo alguns autores, os romances não devem ser explicados, mas sim lidos, ponto final. No entanto, mesmo que isso signifique contrariar esse princípio, compartilho aqui as minhas reações ao texto. No romance, Célestine Bonazébi, uma bela mulher de Brazzaville, na casa dos quarenta, é convidada a ir a Verdun pelo francês Alain Duval, um apaixonado por História, especialmente da Primeira Guerra Mundial, para reflorestar o bosque de Caures, uma área duramente atingida pelos bombardeamentos alemães durante a guerra de 1914-1918. É uma cerimónia simbólica, que inclui também uma vertente ecológica, na medida em que permite reconstruir e trazer de regresso à vida o que foi destruído e aniquilado pela guerra: trata-se, de algum modo, de uma vitória da vida sobre a morte. E é sobretudo uma homenagem aos militares que tombaram no local, incluindo os oriundos das ex-colónias africanas de França, genericamente designados por “Les tirailleurs sénégalais” (os atiradores senegaleses): é aliás esta dimensão que será explorada nas páginas do romance.
O bisavô de Célestine Bonazémi integrou, na Primeira Grande Guerra, um batalhão de soldados do Congo. O seu corpo nunca foi encontrado. O romance põe-nos na pista de um segredo de família (aliás, mais do que um) que ligou intensamente, no passado, duas pessoas: o militar congolês Fulgence Kimbembe e uma jovem da região, Pauline Houpert, que viria a ser ‘vó Pauline, a avó de Alain.
Uma série de acontecimentos íntimos e familiares dão origem a uma certa carta entre esposos; carta que será entregue à mãe de Alain no leito de morte de sua avó. A missiva torna-se uma herança familiar secreta e atravessa duas gerações. Estará na origem de um encontro memorável e marcante entre duas pessoas (Alain e Célestine) cujo destino, a priori, não se cruzaria, uma vez que vivem em países afastados, com culturas distintas e uma diferença significativa de idades. Ele viúvo, ela casada e com quatro filhos, “dona de casa” por opção e dedicação à família construída, apesar dos estudos universitários que a qualificariam para um trabalho diferenciado.
As personagens não são lineares e é precisamente a sua complexidade, heterogeneidade e volume psicológico que vão engrandecer o romance, que pode ser considerado essencialmente uma história de amor com fundo histórico ou vice-versa. Uma dona de casa, tão vulnerável como grandiosa, é também uma mulher em busca de amor e liberdade, que expressa o seu desejo e intenção de se tornar independente financeiramente de forma surpreendente, compreensível ou singular, segundo a opinião dos leitores. Alain, o viúvo de Verdun, é um pequeno empresário que gere o seu próprio negócio de móveis, uma personagem fascinante, homem sério, determinado e culto, cuja vida sofrerá transformações significativas em consequência do amor, da ternura, da cumplicidade e do sentimento de gratidão por uma mulher encantadora.
Este romance apresenta muitos pormenores sobre a Grande Guerra, especialmente sobre a região de Verdun. O enquadramento histórico é muito preciso e encontramos, não sem surpresa, uma longa lista de obras consultadas pelo autor para melhor estruturar a verdade histórica e factual. São factos, sentimentos, reações, com dados estatísticas, testemunhos pessoais, interpretações e experiências. A pandemia do coronavírus surge também como pano de fundo, muitas vezes é, aliás, o tema central, ou seja, está muito presente neste romance; o que permite situar a narração no tempo e caracterizar de forma concreta a situação mundial face aos desafios e tragédias provocadas pelo vírus, nomeadamente em França.
Além disso, também encontramos muita informação e opiniões, frequentemente pela voz e comportamento das personagens, sobre o modus vivendi no Congo, no meio urbano ou nas aldeias, onde as tradições ancestrais têm um peso muito mais visível. Este relato, como outros do mesmo autor, levanta várias questões essenciais de ordem societal: qual é o grau de respeito/aceitação devido(s) aos costumes? Devemos separar o trigo do joio, escolher as boas práticas/tradições e descartar as “más”? O que se passa, segundo a visão que emerge do romance, é que certos costumes são simplesmente um estorvo na vida das mulheres (e dos homens), como hábitos e rituais obsoletos, arcaicos, humilhantes ou obscurantistas, até mesmo cruéis e excessivos, incompatíveis com o livre-arbítrio, o respeito pela integridade humana e noção de equidade de género.
As mulheres do século XXI, ainda que muito apegadas a certos aspetos da sua cultura, o que é muito salutar, desejam, cada vez mais, ser protagonistas das suas próprias vidas no que se refere ao casamento, à sexualidade, à educação dos filhos ou escolhas profissionais. Assim, o autor estimula essas reflexões e também demonstra empatia ao pôr-se no lugar da mulher, um exercício importante para um narrador que faz questão de deslocar-se para melhor ver e sentir o mundo, as pessoas, e vivenciar diferentes perspetivas. As suas personagens desafiam-no, a meu ver, e levam o leitor a refletir seriamente sobre o racismo, a xenofobia, as calúnias e maledicência dos círculos mais fechados, a intolerância, o preconceito, a diferença entre ética e legalidade, na Europa ou em África.
Muitos outros assuntos são também abordados perante o leitor: cada um decidirá como isso o vai afetar de acordo com suas próprias experiências. Adultério, migrações, feitiçaria, diferenças culturais, justiça formal e informal. Mas o mais importante deste romance, na minha leitura, continua a ser a clara homenagem a todos aqueles africanos que lutaram pela França durante as duas grandes guerras (alguns voluntariamente, mas na maioria das vezes forçados) e face aos quais o reconhecimento institucional teria sido muito discreto e insuficiente, ainda que atualmente a tendência seja recuperar essas memórias e reparar, na medida do possível, a falta de discernimento, empatia e diplomacia, o esquecimento, a desvalorização ou a ingratidão humana.
SEGREDO DE FAMÍLIA EM VERDUN é um romance muito cativante: o autor conseguiu tecer tramas realmente interessantes do início à última página, fiel ao seu estilo, com segredos que expressam e valorizam a paixão, o respeito no seio do casal, a atração física, o desespero, a perturbante loucura de todas as guerras, a honra em oposição à simples felicidade, os arrependimentos, o abandono parental e os jogos de amor e sedução na juventude e em todas as idades.
[1] Obra ainda não traduzida para a língua portuguesa.
[2] Publicado por l’Harmattan (Coleção Jeunesse l’Harmattan), em 2022. Ilustrações de Sylvia Chieu. Em português: A Festa de Ya foufou (obra ainda não traduzida para a língua portuguesa).
[3] Publicado por l’Harmattan (Coleção Jeunesse l’Harmattan), em 2022. Ilustrações de Sue Levy. Em português: A Escola de Ya foufou (obra ainda não traduzida para a língua portuguesa).
[4] Publicado por l’Harmattan (Coleção Écrire l’Afrique), em 2021. Ilustração de capa de Sue Levy. Em português: O Jango (obra ainda não traduzida para a língua portuguesa).
[5] Publicado por l’Harmattan (Coleção Écrire l’Afrique), em 2017. Ilustração de capa de Daniel Ntontolo. Em português: Viagem de um Africano à Lorena (obra ainda não traduzida para a língua portuguesa).
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