PRECONCEITO OU PÓS-CONCEITO?

 

 

A idosa senhora movia-se penosamente pela calçada portuguesa arrastando dois incómodos sacos de compras, naquele lusco-fusco do entardecer, que torna todas as suspeitas mais reais e todas as certezas mais subjectivas.

O piso estava escorregadio, e aqui e ali notavam-se zonas lamacentas e poças de água criadas pela chuva recente, que ela nem sempre conseguia evitar, porque não as distinguia com nitidez através dos seus óculos de pesadas lentes bifocais às quais ainda se estava a adaptar.

Teresa morava sozinha, como grande número de idosos lisboetas que sobrevivem numa difícil solidão urbana, e obrigava as frágeis pernas devastadas por artroses e varizes a levá-la através dos caminhos mais sombrios, sinuosos ou irregulares, sempre que preciso, pois não podia contar com outras que não as suas para trazer-lhe o sustento a casa.

A meio da calçada viu, lá longe, aproximar-se uma sombra suspeita. Era um homem alto, jovem e corpulento, de andar bamboleante e dreadlocks. O capuz largo escondia-lhe o rosto cujas feições não se discerniam à média luz. Para  cúmulo usava um par de óculos de sol a uma hora onde definitivamente o Sol se estava já a espreguiçar para deitar-se atrás do último edifício da avenida. A velha dama foi espremendo a vista e ganhando um medo incontrolável à medida que tão peculiar personagem se aproximava de si a passos largos. Pensou em gritar mas a débil voz perdeu-se-lhe num murmúrio inaudível que ficou colado à garganta. Pensou em fugir, poisou os sacos no piso molhado, mas as pernas agarraram-se ao chão num ataque de desespero; por fim, diante da iminência do assalto, deu-se por vencida, e pediu a Deus que a ajudasse a passar depressa por aquele mau momento, sem danos maiores.

De repente, para seu grande espanto, quando o homem estava praticamente à distância de um abraço, inclinou-se e, zangado, pegou numa lata caída no chão, que pôs cuidadosamente no ecoponto. E ainda comentou:

– Esta malta, esta malta… não tem civismo nenhum…- imagine se a senhora tropeça numa coisa destas!

Depois, sem hesitar, pegou resoluto nos sacos da senhora e perguntou-lhe com delicadeza:

– Posso ajudá-la?

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Publicado originalmente em O Gazzeta /coordenado por Germano Xavier, 16/12/2014

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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