JARDIM, um conto de “CONTEXTURAS” (contos de Luísa Fresta e quadros de Armanda Alves)

Quadro de Armanda Alves

JARDIM

O frio intenso assobiava na base do crânio liso do rapaz e ele subiu maquinalmente a gola do sobretudo escuro. Movia-se com elegância pela noite opaca, depois de ter enterrado rapidamente o gorro que a namorada lhe oferecera no Natal. Tinha estacionado o carro obsessivamente, como sempre, paralelo ao passeio e a uma distância rigorosamente medida com o olhar. Não gostava de aproximações e fazia desses pequenos rituais uma afirmação do seu estilo.

A namorada queria-o mais solto e espicaçava-o com atrevimento feito de sombras misteriosas e bravura. Era uma mulher de formas aveludadas e carácter de vulcão, descomprometida com a aparência mas nunca desleixada. Qualquer ganga casual ou algodão leve comprado na feira a fazia luzir como uma estrela. Não precisava de adornos para brilhar, como as flores do campo que colhia diariamente e com as quais fazia exuberantes arranjos. Gostava de lavanda, alecrim e arruda, que colocava sub-repticiamente no carro de Sansão para lhe dar um cheiro humano. Sansão colhia com desassossego esses gestos que só tolerava a Nix, dona dos seus dias e rainha das suas noites.

Aquela que lhe ficou na memória, como viria a relatar, foi uma noite sem luar. Quando entrou no hospital não viu o segurança que, habitualmente, o saudava com o polegar em riste. Um conterrâneo seu que conhecia vagamente por terem amigos comuns, entretanto extraviados pelo rendilhar do tempo. Mas Sansão conhecia de cor o caminho que levava à cafetaria. Tinha voltado mais cedo a Lisboa, depois de uma intensa semana no Alentejo, onde dirigia uma obra.

Seguiu pelo corredor amplo e saudou duas colegas de Nix, que lhe devolveram um piscar de olhos inocente.

– Estás à procura da Nix? Eu vou avisá-la, espera aí… – disse-lhe, de repente Estrela, colega de equipa da namorada.

Sansão opôs-se com firmeza – Não, não, eu quero fazer-lhe uma surpresa.

– Tens a certeza? – insistiu Estrela. – Não me custa nada, posso dizer-lhe que venha…

Sansão sentiu um vago incómodo percorrer-lhe o crânio. – Estrela, há algum problema?

– Problema nenhum, estás à vontade – aquiesceu a rapariga perante o olhar atónito da outra colega que girava a cabeça de um para outro sem conseguir situar-se.

Sansão seguiu com alegria em direção à cafetaria, que estaria por essa a hora a fechar. Mas ele conhecia o ritual de Nix, que tomava sempre um chá sozinha antes de encerrá-la ao público. Durante esses escassos segundos que separam a ventura da tragédia, Estrela tentava desesperadamente ligar para Nix… E os passos de Sansão deslizavam pelo corredor limpo, enquanto empunhava um ramo de flores campestres, as preferidas de Nix, para assinalar a noite em que se tinham conhecido, há um ano.

A porta da cafetaria estava semiaberta e as luzes quase todas apagadas. O rapaz entrou, maquinalmente procurando um sinal da namorada e apercebeu-se do excessivo calor do local ao ver os espelhos embaciados. Sentiu um desconforto súbito quando viu uma sabrina de Nix tombada atrás do balcão e mais adiante um soutien em cima de uma palete de leite. A arma do segurança, as suas calças e o cinto estavam agora ao alcance de um gesto seu. Sem hesitar pegou na arma e apontou-a ao rosto apavorado do homem nu. Durante segundos avaliou a situação e sentiu uma náusea incontrolável. Nix chorava convulsivamente; o segurança, petrificado, clamava quase em surdina por misericórdia, enquanto se dizia vítima de uma armadilha da mulher.

Sansão ordenou-lhes que se virassem de costas, não queria encará-los quando os matasse. Depois, com uma tristeza infinita, poisou a arma em silêncio e ali deixou cair o ramo de flores.

Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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