JARDIM
O frio intenso assobiava na base do crânio liso do rapaz e ele subiu maquinalmente a gola do sobretudo escuro. Movia-se com elegância pela noite opaca, depois de ter enterrado rapidamente o gorro que a namorada lhe oferecera no Natal. Tinha estacionado o carro obsessivamente, como sempre, paralelo ao passeio e a uma distância rigorosamente medida com o olhar. Não gostava de aproximações e fazia desses pequenos rituais uma afirmação do seu estilo.
A namorada queria-o mais solto e espicaçava-o com atrevimento feito de sombras misteriosas e bravura. Era uma mulher de formas aveludadas e carácter de vulcão, descomprometida com a aparência mas nunca desleixada. Qualquer ganga casual ou algodão leve comprado na feira a fazia luzir como uma estrela. Não precisava de adornos para brilhar, como as flores do campo que colhia diariamente e com as quais fazia exuberantes arranjos. Gostava de lavanda, alecrim e arruda, que colocava sub-repticiamente no carro de Sansão para lhe dar um cheiro humano. Sansão colhia com desassossego esses gestos que só tolerava a Nix, dona dos seus dias e rainha das suas noites.
Aquela que lhe ficou na memória, como viria a relatar, foi uma noite sem luar. Quando entrou no hospital não viu o segurança que, habitualmente, o saudava com o polegar em riste. Um conterrâneo seu que conhecia vagamente por terem amigos comuns, entretanto extraviados pelo rendilhar do tempo. Mas Sansão conhecia de cor o caminho que levava à cafetaria. Tinha voltado mais cedo a Lisboa, depois de uma intensa semana no Alentejo, onde dirigia uma obra.
Seguiu pelo corredor amplo e saudou duas colegas de Nix, que lhe devolveram um piscar de olhos inocente.
– Estás à procura da Nix? Eu vou avisá-la, espera aí… – disse-lhe, de repente Estrela, colega de equipa da namorada.
Sansão opôs-se com firmeza – Não, não, eu quero fazer-lhe uma surpresa.
– Tens a certeza? – insistiu Estrela. – Não me custa nada, posso dizer-lhe que venha…
Sansão sentiu um vago incómodo percorrer-lhe o crânio. – Estrela, há algum problema?
– Problema nenhum, estás à vontade – aquiesceu a rapariga perante o olhar atónito da outra colega que girava a cabeça de um para outro sem conseguir situar-se.
Sansão seguiu com alegria em direção à cafetaria, que estaria por essa a hora a fechar. Mas ele conhecia o ritual de Nix, que tomava sempre um chá sozinha antes de encerrá-la ao público. Durante esses escassos segundos que separam a ventura da tragédia, Estrela tentava desesperadamente ligar para Nix… E os passos de Sansão deslizavam pelo corredor limpo, enquanto empunhava um ramo de flores campestres, as preferidas de Nix, para assinalar a noite em que se tinham conhecido, há um ano.
A porta da cafetaria estava semiaberta e as luzes quase todas apagadas. O rapaz entrou, maquinalmente procurando um sinal da namorada e apercebeu-se do excessivo calor do local ao ver os espelhos embaciados. Sentiu um desconforto súbito quando viu uma sabrina de Nix tombada atrás do balcão e mais adiante um soutien em cima de uma palete de leite. A arma do segurança, as suas calças e o cinto estavam agora ao alcance de um gesto seu. Sem hesitar pegou na arma e apontou-a ao rosto apavorado do homem nu. Durante segundos avaliou a situação e sentiu uma náusea incontrolável. Nix chorava convulsivamente; o segurança, petrificado, clamava quase em surdina por misericórdia, enquanto se dizia vítima de uma armadilha da mulher.
Sansão ordenou-lhes que se virassem de costas, não queria encará-los quando os matasse. Depois, com uma tristeza infinita, poisou a arma em silêncio e ali deixou cair o ramo de flores.
Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).
Faça um comentário