Crónicas de São Tomé
Destino : A Viagem ou J’ai survolé Nouakchott [1].
A viagem começa no primeiro café tomado no aeroporto antes da partida. Finalmente abre o check-in e preparo-me para entregar a mala. Surpresa: os nossos lugares tinham sido trocados (“bloqueados”), no jargão da companhia, eventualmente por razões de segurança, “mas que não nos preocupássemos”, sossegou-nos a eficiente assistente de terra, pois os lugares eram igualmente bons, situados perto das casas de banho e da tripulação, “para qualquer coisa que precisássemos”. A troca pareceu-me favorável, embora continuasse sem perceber o motivo para se alterarem lugares depois de ser feito o check-in online. Ao entrar no avião, constatei que os lugares que nos eram destinados estavam ocupados por passageiros da classe executiva. Provavelmente a maneira que a companhia encontrou para resolver um constrangimento causado pelo over booking foi transferir dois passageiros de classe económica, dos melhores para os piores lugares do avião, ao fundo, num sítio onde qualquer criança franzina de dez anos se sentiria encurralada. Reclamei delicadamente e o simpático assistente de bordo colocou-nos à disposição dois lugares confortáveis. Problema resolvido sem dramas maiores.
Entretanto uma mulher loira, elástica e atlética como uma onça, saltou por cima de um passageiro para ir à casa de banho. Fê-lo mais do que uma vez, fazendo parecer fácil aquilo que poderia causar uma crise de ciática a qualquer um. Um pé no apoio dos braços, outro por cima do passageiro que dormia profundamente junto à coxia. E lá foi ela passeando pelo avião como um gato sobre um piano de cauda. Outro passageiro tentou por 3 vezes ir ao WC mas os deuses não lhe foram favoráveis; de cada vez que a vontade apertava cruzava-se com o carrinho das refeições ou do café e lá ficava ele encurralado sendo obrigado a retroceder de marcha a ré, com a elegância possível; haja próstata para tanta espera! Quando, à quarta vez, conseguiu chegar ao seu destino, tive vontade de bater palmas e confesso que fiquei comovida.
E falando em aplausos, porque é que as pessoas aplaudem uma boa aterragem? Ok, nem todos o fazem. Eu não o faço mas gosto de observar aqueles que aplaudem, grunhem e gritam, tudo ao mesmo tempo. Como num concerto de rock. Mas não consigo imaginar o comandante Fonseca Damião como uma estrela pop. Ou rock. Nem um cirurgião, nem um professor. Tais aplausos merecem um estudo antropológico. Depois há aqueles passageiros que se beijam ruidosamente mesmo à nossa frente, enquanto fazem tremer as cadeiras reclinadas para trás. Apetece-me falar-lhes numa artrose incipiente num joelho mas receio não os comover nem os demover. De cada vez que se agarram os meus joelhos sofrem um impacto como num carrinho de choques da feira. E viva o amor. Entretanto o comandante vai dando conta da viagem à laia de crónica, com um estilo notável. E o ecrã de bordo também nos explica que sobrevoamos Nouakchott, depois Dakar. Imagino-me a mandar abraços para os amigos que por lá andam. “Ainda não é hoje que tomamos esse chá mas daqui vos sobrevoo e sinto-me incrivelmente próxima de vocês neste instante”. Grito mentalmente: “J’ai survolé Nouakchott”. Já é um enorme passo nesta viagem, um tango aéreo, com toda a turbulência e beleza sem limites que lhe são inerentes. Aos poucos aproximamo-nos do Gana, pois Acra é o primeiro destino. Entra una equipa masculina de limpeza que nos pulveriza com aerossóis. Depois é a vez do pessoal da companhia espalhar desinfetante assegurando que “não oferece qualquer perigo para a saúde”. Ficamos na dúvida se se refere à saúde dos mosquitos ou dos humanos; nenhum mosquito pergunta e eu sigo-lhes o exemplo. A equipa é exclusivamente masculina, para espanto dos europeus, que estão habituados a ver estas tarefas entregues predominantemente às mulheres. Ou vice-versa, o que, não sendo igual, dá no mesmo. De Acra para S. Tomé é um pulo. Uma passagem matinal pela IC19 pode ser mais demorada e bem mais esgotante.
À chegada, a temperatura é amena e o aeroporto que nos acolhe é pequeno e funcional. Os funcionários parecem excecionalmente cordiais e agradáveis. Não estamos habituados a ser mimados e este tratamento choca pela positiva. Surpreende. A saída do aeroporto é o ponto de encontro com numerosos “amiguinhos” que me querem vender coisas que ainda não sei que preciso. Um deles garante que me conhece do Facebook. Todos se apresentam e eu retribuo a gentileza com alguma timidez. Outro afirma que é o Mantorras de STP, nome que não vou esquecer por razões que explicarei mais tarde. Carregam malas que eu já estou a levar.
O trajeto para o hotel, por uma estrada sossegada, fica a cargo de Santos, um jovem guia turístico muito eficiente, que acumula o emprego com o curso universitário que frequenta. Santos conhece a cidade toda e aproveita o caminho para nos falar da terra e das gentes. Ficamos a saber que os níveis de segurança aqui são altos “porque aqui toda a gente se conhece”, há pouca gente, e “se alguém fizer asneira todos sabem”; disse-o por outras palavras mas foi o que eu retive. Assim são os meios pequenos, para o bem e para o mal.
O hotel é encantador; não obstante, por alguma razão que ainda ignoro, o sono teima em fugir. Por isso vos escrevo esta crónica, madrugada fora, esperando pela próxima etapa para viver. E depois contá-la.
[1] Sobrevoei Nouakchott
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