O Vale das Sombras

O Vale das Sombras

 

Estava precisando muito ouvir uma canção que falasse dos anjos tortos à Drummond. A genialidade de Caetano Veloso veio à tona, lacrar uma estampa em meu peito.
Sempre amei Caetano, desde os tempos em que frequentava seus shows por aí, vendo-o beijar os músicos na boca – soltando e saltando a língua doce e ferina, destilando sua pátria, sua mátria, sua frátria, sua beleza pura. O tempo passa e fui me afastando das lindezas, no turbilhão de um mundo em desolação, experimentando o sonho ilusório do Vale do Silício, que hoje chamo de Vale do Enxofre…também chamo de vale sombrio ou vale da morte e da escuridão. “Sou mesmo exagerada?”
A cada dia que passa estamos a perder a liberdade de forma voluntária, prisioneiros das bolhas geradas pelos algoritmos. E venho há muito falando sobre isso, com dor e sofrimento. Tudo ao redor está regulado e monitorado nessa prisão sem grades. Os cérebros lavados e viciados sem saber de nada, desnorteados e tudo parece tão natural.

Campus II da Apple do site http://www.amandaviaja.com.br/

Caetano vem com sua grandeza esplêndida, expondo de forma poética o que estamos a viver. Ele envelhece belo, com seus neurônios intactos, sua sensibilidade profunda, sua inteligência gritante que grita numa voz doce e terna, a verdadeira guerra que nos arrodeia e se configura. Há muitas décadas temia-se uma guerra atômica, nuclear, uma guerra não sei de quê…e hoje vive-se a guerra silenciosa dos algoritmos, alterando, configurando e desconfigurando neurônios e o mundo. IA que escraviza e mata de um jeito sutil.

Vale do Silício – (Foto/Getty Images)

Desde a Primavera Árabe sabe-se que não é preciso um exército para destruir uma nação, basta o emaranhado calculado das inteligências artificiais para moderar as redes sociais e toda a web. Tudo feito de forma eficaz e matematicamente precisa em suas intenções de delinear o mundo ao seu bel prazer. Muitos países caíram nessa teia e o Brasil é um exemplo real da nossa lamentável decadência, fomos feridos na carne, nessa guerra maldita.

“Anjos tronchos” é uma canção que me representa e me fez ter um pouco mais de paz no coração ouvindo e vendo Caetano revolucionar, com sua música e poesia, a nossa estagnação. Ele, mais vivo do que nunca e eu, nesse momento de êxtase ao ouvir a canção, mais viva do que nunca por me identificar profundamente com a palavra cantada de Caetano Veloso.

“Ainda que eu caminhe pelo Vale das Sombras e da morte” hei de ouvir as canções mais belas e as poesias mais delirantes pelos caminhos sem volta.

Elizabeth de Souza

*** Não resisti e escrevi este texto depois de ouvir “Anjos Tronchos”, de Caetano Veloso

Anjos Tronchos
Caetano Veloso

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis

Agora a minha história é um denso algoritmo
Que vende venda a vendedores reais
Neurônios meus ganharam novo outro ritmo
E mais e mais e mais e mais e mais

Primavera Árabe e logo o horror
Querer que o mundo acabe-se
Sombras do amor

Palhaços líderes brotaram macabros
No império e nos seus vastos quintais
Ao que reveem impérios já milenares
Munidos de controles totais

Anjos já mi ou bi ou trilionários
Comandam só seus mi, bi, trilhões
E nós, quando não somos otários
Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções

Ah, morena bela estás aqui
Sem pele, tela a tela
Estamos aí

Um post vil poderá matar
Que é que pode ser salvação?
Que nuvem, se nem espaço há
Nem tempo, nem sim nem não
Sim nem não

Mas há poemas como jamais
Ou como algum poeta sonhou
Nos tempos em que havia tempos atrás
E eu vou, por que não?
Eu vou, por que não? Eu vou

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Tocaram fundo o minimíssimo grão
E enquanto nós nos perguntamos do início
Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão

Sobre Elizabeth Souza 419 Artigos
Elizabeth de Souza é coordenadora e editora do Portal Entrementes....

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