A idosa senhora movia-se penosamente pela calçada portuguesa arrastando dois incómodos sacos de compras, naquele lusco-fusco do entardecer, que torna todas as suspeitas mais reais e todas as certezas mais subjectivas.
O piso estava escorregadio, e aqui e ali notavam-se zonas lamacentas e poças de água criadas pela chuva recente, que ela nem sempre conseguia evitar, porque não as distinguia com nitidez através dos seus óculos de pesadas lentes bifocais às quais ainda se estava a adaptar.
Teresa morava sozinha, como grande número de idosos lisboetas que sobrevivem numa difícil solidão urbana, e obrigava as frágeis pernas devastadas por artroses e varizes a levá-la através dos caminhos mais sombrios, sinuosos ou irregulares, sempre que preciso, pois não podia contar com outras que não as suas para trazer-lhe o sustento a casa.
A meio da calçada viu, lá longe, aproximar-se uma sombra suspeita. Era um homem alto, jovem e corpulento, de andar bamboleante e dreadlocks. O capuz largo escondia-lhe o rosto cujas feições não se discerniam à média luz. Para cúmulo usava um par de óculos de sol a uma hora onde definitivamente o Sol se estava já a espreguiçar para deitar-se atrás do último edifício da avenida. A velha dama foi espremendo a vista e ganhando um medo incontrolável à medida que tão peculiar personagem se aproximava de si a passos largos. Pensou em gritar mas a débil voz perdeu-se-lhe num murmúrio inaudível que ficou colado à garganta. Pensou em fugir, poisou os sacos no piso molhado, mas as pernas agarraram-se ao chão num ataque de desespero; por fim, diante da iminência do assalto, deu-se por vencida, e pediu a Deus que a ajudasse a passar depressa por aquele mau momento, sem danos maiores.
De repente, para seu grande espanto, quando o homem estava praticamente à distância de um abraço, inclinou-se e, zangado, pegou numa lata caída no chão, que pôs cuidadosamente no ecoponto. E ainda comentou:
– Esta malta, esta malta… não tem civismo nenhum…- imagine se a senhora tropeça numa coisa destas!
Depois, sem hesitar, pegou resoluto nos sacos da senhora e perguntou-lhe com delicadeza:
– Posso ajudá-la?
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Publicado originalmente em O Gazzeta /coordenado por Germano Xavier, 16/12/2014
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