MAISON DE RETRAITE (Lar de Idosos)- cinema

“A minha maneira de viver é acreditando no futuro ; se eu fosse fatalista, não era cineasta. Nada me levava a fazer cinema. Fui eu que escolhi. Queria ver coisas e mostrá-las. Quando se tem essa curiosidade, não se pode ser fatalista “.

Souleymane Cissé

(excerto do artigo de Moussa Bolly para Africiné).

«MAISON DE RETRAITE»[1] – um filme de Ismaël Césaire Nebyinga Kafando

O maior festival africano de cinema traz-nos, na sua 26ª edição, algumas belas surpresas que merecem um olhar mais atento. Estamos a referir-nos ao FESPACO 2019, que decorre em Ouagadougou, Burkina Faso, de 23 de fevereiro a 3 de março do presente ano. Na categoria “escolas africanas de cinema”, descobrimos a curta-metragem de ficção de Ismaël Césaire Nebyinga Kafando (já apresentada em outros festivais), entre outras duas do Burkina Faso[2], às quais dedicaremos igualmente uma breve nota.

Recordo as palavras de Cheick Fantamady Camara, realizador da Guiné Conakry desaparecido em 2017, que nos deixou um testemunho pessoal sobre o cinema no continente, a propósito da rodagem dos seus dois filmes e das dificuldades encontradas na prossecução desses projetos: o cineasta insistia na necessidade imperiosa de formação dos jovens realizadores no continente, e quando olhamos para estas obras, oriundas das escolas em África, não podemos deixar de pensar nas suas declarações premonitórias e esperançosas e na visão de futuro que lhes é inerente.

«Maison de Retraite» é um filme conciso e realista sobre a situação dos idosos no continente, à luz do que se passa hoje nas modernas urbes africanas. Não é um problema novo nem é especificamente de África; aliás, tradicionalmente, o continente africano tem feito prova, ao longo de séculos, de uma sabedoria inata e quase espontânea para lidar com a questão da terceira idade: se por um lado nos parece que tal costume está diretamente relacionado com o respeito devido aos mais velhos — a roçar a veneração — e a consideração pela experiência de vida e sabedoria dos idosos, atribuindo-lhes funções de elevada responsabilidade na esfera familiar e comunitária, por outro, muitos países africanos são constituídos essencialmente por pessoas jovens e os séniores não estão presentes em número suficientemente grande a ponto de causarem embaraços aos sistemas de Segurança Social dos países e de sugerirem novos desafios de gestão social, ou em matéria e saúde.

Com o advento da modernização e da globalização, as sociedades, africanas incluídas, deixaram de ter um espaço próprio e privilegiado para grande parte dos seus idosos. Tal como em muitos países ocidentais, estes passaram a ser vistos como um fardo para as famílias, mais pequenas, estruturadas em torno de um núcleo, que deixa de considerar uma mais-valia um ser humano que já não é produtivo e não acrescenta realmente algo de significativo à economia familiar — e essa abordagem em forma de alerta parece-nos muito clara na mensagem do jovem cineasta.

O filme de Nebyinga Kafando traz a lume esta questão, cada vez mais atual: quais os desafios para os mais jovens (adultos em idade ativa) e para a sociedade em geral no que diz respeito ao acompanhamento dos mais velhos nos dias de hoje e num futuro próximo, nomeadamente em África, quando a doença bate à porta e o idoso, já algo afastado do convívio da família nuclear, se torna ainda mais excluído por via da invalidez?

Não existem soluções miraculosas: grande parte das mulheres têm um emprego formal, a par dos homens, e nem uns nem outros dispõem realmente de tempo (nem propriamente de vontade ou vocação) para alargar a relação familiar a um terceiro elemento fragilizado, privando-se da relação de intimidade de casal, que é sentida como aquela que deve ser resguardada acima de qualquer outra. Deverá a harmonia do lar e a relação marido/mulher permanecer intacta e prevalecer sobre tudo e todos? Ou, pelo contrário, existindo laços de sangue (ou de criação) diretos/próximos, afeto e dívidas de gratidão, o idoso, doente ou incapacitado, deverá ser (ou continuar a ser) incluído na rotina das famílias? Como partilhar a responsabilidade dos cuidados entre a família — a primeira linha de cuidadores — o Estado e o setor privado de assistência (serviços, associações ou instituições particulares de solidariedade social)?

A vida deve ser preservada a todo o custo, na ótica da medicina moderna e do pensamento dominante, porém, até onde poderá o ser humano viver com dignidade, ser objeto de estima e respeito por parte da família e possuir alguma autonomia, por mínima que seja, na tomada de decisões tão simples como a escolha do tipo de sumo? É espantoso constatar como se consegue, em apenas 13 minutos, pôr o dedo na ferida e incentivar o debate. Enquanto uns se mostram chocados com a ideia da existência de lares de idosos no contexto local, outros reagem bem à ideia como símbolo de progresso.

Uma palavra de apreço também para a equipa técnica e todos os atores, sem exceção, destacando o papel do pai/avô idoso, pela sua expressividade e realismo, magnificamente assumido pelo ator veterano Serge Henry.

Neste filme fala-se também da infantilização dos idosos e da ostracização subtil e progressiva a que são votados muitos deles, que deixam de ser informados das peripécias e dos acontecimentos na esfera da família, ou, dizendo de outro modo, deixam simplesmente de contar (“[…]Quand elle était là, toute la famille se retrouvait et maintenant je ne compte pour personne!”/ “[…]Quando ela cá estava toda a família se reunia e agora já ninguém me dá importância”).

A terceira idade e tudo o que lhe é associado não pode nem deve ser tabu. Todos nós para lá caminhamos, alguns já se adiantaram e esperam-nos mais à frente, para nos explicarem como se (sobre)vive numa idade mais avançada. Outros ficaram pelo caminho e por isso serão eternamente jovens — numa fotografia. «Maison de Retraite» poderá ser o destino de cada um de nós. Mas por agora é a história de Nebyinga Kafando, vivida numa tela.

Ficha técnica:

Título provisório :                              «Maison de retraite» (Lar de idosos)

Género :                                               Ficção

Língua :                                               Francês

Suporte :                                              DVD, chave USB.

Formato :                                             16/9

Público alvo :                                      todos os públicos

Duração :                                             13 minutos

Ano de produção :                             2016

Conceção/realização :                      Nebyinga KAFANDO

Produção :                                            ISIS (com o apoio de Africalia)

Biografia (resumida) do realizador:

Ismaël Césaire Nebyinga Kafando tem uma licenciatura em realização pelo Instituto Superior da Imagem e do Som (Institut Supérieur de l’Image et du Son – ISIS) do Burkina Faso. Primeira curta-metragem realizada em 2014 (premiada no Benin e no Niger). Assistente de realização, nomeadamente em projetos selecionados para o FESPACO 2019 («Duga les charognards», «Le Bonnet de Modibo» e a série televisiva «La team des belles rebelles»).

Alguns prémios e festivais :

  • clap ivoire 2017
  • melhor filme Fescilom (Festival de cinema de Lomé) 2018
  • extra competição FICMEC (Festival Internacional de Curtas Metragens das Escolas de Cinema)

[i] Ficha técnica, biografia do realizador e prémios obtidos: informações gentilmente disponibilizadas pelo cineasta.

[1] LAR DE IDOSOS

[2] O BURKINA FASO, país anfitrião, faz-se representar este ano por 3 curtas-metragens nesta categoria, num total de 16 selecionadas.

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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