Contos do Fim do Mundo

Em 2015 escrevi um conto que já falava de distanciamento social, confinamento doméstico, caos, estocagem de alimentos, mudanças forçadas e muitas incertezas sobre o futuro. Em 2016, ele foi publicado no meu livro “Pessoas partidas” sob o título “Se der, eu volto”. A escritora Leide Fuzeto Gameiro escreveu uma ótima continuação, chamada: “Queria que você estivesse aqui”. Apesar de escritos há alguns anos, ambos permanecem bastante atuais. Abaixo, coloco os dois contos na íntegra.

Se der, eu volto

(Diego Lops)

Eu a perdi para a Revolução.

As balas zunem lá fora, bombas explodem, sirenes soam, gritos ecoam, helicópteros ameaçam, a cidade vibra, e eu aqui, na cama, pensando onde andará Gabriela.

– –

Não vi os sinais. Sempre fui alheio ao meu entorno, ignorando tudo o que não era eu. Gabriela não. Mulher de mil causas, não sei de onde tirava tanta energia. Ou era a própria energia que estava a serviço de Gabriela? Lia livros inteiros numa noite, pulava de cachoeiras, escrevia para o jornal da faculdade, cuidava dos seus três cachorros e do pai doente, pintava mechas verdes, trabalhava meio turno na biblioteca municipal, estudava russo, fazia natação, e ainda assim arranjou tempo para notar alguém tão diferente dela em tudo. Como soube depois, foi por causa dos livros que eu pegava emprestados. A única ficção era Shakespeare, no original, e em suas diversas traduções, que eu gostava de cotejar; o resto eram dezenas de livros de fotografia e guias de viagem. Os guias eram de lugares variados, como Indonésia, Egito, Hungria, Quebec. Parecia que estava planejando uma volta ao mundo, foi o que ela me disse. Mais tarde, com a convivência, ela descobriu que eu mal saía de casa. Tímido e com medo patológico de multidões, tinha frequentes crises de pânico na rua, fazendo um esforço brutal para buscar minha fuga semanal na biblioteca, perto de casa e quase sempre vazia. Mas não pareceu se importar muito com minha habitual reclusão. Naquelas tardes de domingo, a minha cama era o nosso mundo. Hoje é um cemitério de memórias.

80

As lápides, seus fios pretos cacheados no travesseiro. Vieram as reuniões, as viagens, depois as malditas passeatas. Uma vez voltara quase cega, com os olhos inchados do gás lacrimogêneo. Noutra, chegou em casa com um corte no supercílio esquerdo, que lavei, tratei e beijei. Em nenhuma dessas ocasiões pareceu triste ou assustada, o que ela deixava transparecer era orgulho. Eu entendia seu ímpeto rebelde, eu tivera minhas experiências, antes de ela ter nascido, e por isso mesmo julgava suas atividades como um mero entretenimento juvenil. Primeiro houve a queda do prefeito, do governador e, depois, da presidente, e só então fui me dar conta de que, dessa vez, a situação era bem mais grave. Era o golpe, e a subsequente Revolução. Soube de tudo isso por ela, já que eu não via tevê nem lia jornais. Amigos de Gabriela já haviam sido presos ou simplesmente desaparecido, e implorei para que ficasse comigo em casa: — Podemos estocar alimentos até isso tudo passar, ficaremos bem — falei. — Não posso. Precisam de mim — disse ela. — Quem precisa de ti sou eu — respondi. Nessa noite discutimos violentamente, e dormimos em aposentos separados. Pela manhã, sua mochila havia sumido, e ela também. Deixou para trás roupas, livros e um bilhete que me perfurou o peito:

Se der, eu volto.

te amo,

G.

– –

21 dias

Passaram-se 21 dias e não soube mais dela. Ligo para o seu celular todos os dias, embora esteja sempre desligado. E agora deixo a televisão permanentemente ligada, aproveitando os raros momentos em que a eletricidade é restabelecida, na esperança de ver uma imagem sua no noticiário. Uma vez vi uma jovem de lenço ocultando o rosto que pensei ser ela. Na cena, repetida algumas vezes, arremessava uma garrafa em chamas contra a polícia de choque. Mas foi em outra cidade, terá sido mesmo ela? A situação só piora: agora a polícia não usa apenas balas de borracha e gás lacrimogêneo, está usando munição de verdade. Quando a energia cai, ligo o rádio a pilhas, como se qualquer alteração no tom de voz do locutor fosse me dar alguma pista da presença dela. Lacrei as janelas com fita isolante para evitar a fumaça da rua. Cada estouro de bomba que ouço, cada tiro, cada estilhaço de vidro é um estremecimento por dentro, em breve não terei mais nada inteiro.

50 dias

Emagreci e pouco durmo, uma barba se espalhou em desordem pela minha face como inço em um terreno abandonado, apagando meus traços pálidos; e a falta dela só aumenta. Há pouco mais de um ano, Gabriela irrompeu pela minha porta, e injetou vida a uma mera existência. E o seu silêncio hoje me esmaga, preenchendo cada centímetro do apartamento, cada vão entre os móveis empoeirados. Não sei para quem ligar, não conhecia seus amigos. Buscar informações em órgãos oficiais só vai colocá-la numa lista negra, se é que já não está. Meu prédio está sem luz, o celular não funciona, e há três dias estamos sem água. O gás, ainda bem, não foi cortado. É a ele que me entregarei quando não suportar mais a ausência dela; meu último recurso, minha solução final.

58 dias

Ligo o gás. Deito no chão da sala e fecho os olhos. São 58 dias, mas o tempo agora já não tem mais divisões. Vejo Gabriela acordando ao meu lado na cama pela primeira vez, abrindo os olhos devagar e sorrindo seu riso de canto de boca, sinto o cheiro do seu cabelo, ouço sua voz me chamando… chamando… estico as mãos e posso sentir a pele do seu rosto… Preciso encontrá-la… preciso.

– –

Abro a porta. Meus olhos doem, se acostumando com a claridade que inunda meu campo de visão. Cubro o rosto com um cachecol e coloco os óculos de mergulho de Gabriela para me proteger da fumaça dos carros de polícia queimando. Na mochila, garrafas d’água e a velha Luger do meu avô. Caminho sem olhar para trás. Gabriela, você foi atrás da sua Revolução, agora eu vou buscar a minha.

FIM

Queria que você estivesse aqui

(de Leide Fuzeto Gameiro)

“Did you exchange

A walk on part in the war

For a lead role in a cage?”

Acordou com um sorriso de canto de boca e, por alguns segundos, pensou estar em casa e que Miguel cantava para acordá-la. Abriu os olhos e o sorriso desapareceu. Era um oficial do exército que cantarolava repetidamente essa parte da música, batendo os dedos na grade, enquanto levantava sua blusa com o coturno. Ergueu-se de um pulo do chão imundo e super lotado da cela, arrumou a blusa e levou a mão à nuca, onde a ferida a fazia imaginar onde estava. O sangue estava quase seco, deveria fazer muito tempo que estava ali. Olhou em volta. Não conhecia nenhum outro prisioneiro.

Foi conduzida pelo militar por um longo corredor, com piso de cimento e poucas portas. Parecia um grande galpão onde improvisaram uma base. Exceto pela cadeira no centro, a sala para onde foi empurrada estava vazia, com infiltração pelas paredes e nenhuma janela. Então foi aqui que terminou a Marcha das pessoas de bem? Lembrou do dia que chegou em casa com o supercílo aberto, o sangue escorrendo pelo rosto. Miguel ficou desesperado, lavou, fez curativo, beijou. Enquanto ela sentia orgulho por terem abafado mais uma vez a marcha reacionária. Foi empurrada para a cadeira. Acomodou-se e ficou olhando a parede úmida, enquanto ele a observava.

– Tire a roupa.

Foi só o que ouviu. Fechou os olhos e lembrou de Miguel dando-lhe essa ordem, com um sorriso malicioso, quando eles passavam domingos inteiros na cama e ela lia para ele seus trechos preferidos de Tomas e Tereza. Talvez, se mantivesse o pensamento nele, suportaria com mais serenidade o que vinha pela frente. Levantou e tirou a roupa. Com outro empurrão caiu sentada de volta na cadeira.

As perguntas eram feitas com muita calma, enquanto o inquisidor passava a mão pelo seu corpo. Como um gato brinca com sua presa antes de comê-la, ele sorria. Ela nada tinha a dizer. Era só uma estudante. Participava das manifestações como mero entretenimento juvenil, dizia Miguel. Mas nada que dizia convencia seu algoz. Escrevia no jornal da faculdade, estudava russo, não podia ser uma simples estudante que vai na onda. Sabia muito bem o que fazia e tudo o que sabia seria arrancado ali, agora e por ele, dizia, enquanto apertava sua coxa com uma das mãos.

Arrancou sangue. E no dia seguinte e nos infinitos seguintes, mais e mais… Até que ela, em completo desespero, sem saber como fazer aquilo parar, começou a falar. Sim, estudava russo para poder se comunicar com eles. Onde se encontravam? Na biblioteca, onde trabalhava meio período, que na verdade era só uma fachada para os encontros. Aconteciam todos os dias, nos momentos de pouco movimento, ela abria as portas para eles. No começo era só por curiosidade, mas depois foi ficando sério. Quando percebeu já era uma deles. Seus nomes? Diria todos. William Godwin, Errico Malatesta, Neno Vasco, Emma Goldman, Max Stirner, Voltairine de Cleyre, Lucy Parsons, Liev Tolstoi, Murray Bookchin, Maria Lacerda Moura, Noam Chomsky, Herbert Read, Federica Montseny, Piotr Kropotkin, Mikhail Bakunin… Foram essas pessoas que começaram a revolução. O líder? Sim, entregaria o líder também. Quem teve a ideia de começar tudo foi Willian Godwin. Mas quem liderava a revolução, o mestre de todos eles era Pierre-Joseph Proudhon. Foram eles que a levaram para a rua. Eles que a fizeram acreditar em liberdade, igualdade e individualismo e querer o fim do Estado e da Igreja. Eram eles que representavam o lado lúcido da guerra que vibrava lá fora, entre conservadores, militares, anarquistas e comunistas. Era por causa deles que a Marcha das pessoas de bem estava sendo sufocada e os milicos tinham que se esconder em porões imundos para estuprar estudantes. Teria dito essa última frase se fosse tão forte quanto Miguel pensava que era.

Foi acordada um dia, de uma semimorte, por um médico. O porão estava sendo evacuado. Abriu os olhos, viu luzes, cachorros, tumulto, e desmaiou de novo.

Vencemos! Pelo rádio a pilha, do quarto do hospital, participava como ouvinte da vitória que ajudou a conquistar. Os revolucionários desfilavam pelas avenidas das grandes capitais, órgãos estratégicos do governo estavam ocupados. Depois de derrubar prefeitos, governadores, presidente, fechar o congresso e vencer os militares, os revolucionários estavam no controle. Sorriu, feliz por estar viva para poder ver isso. Acabou o Estado.

No dia em que teve alta, depois de recuperar alguns quilos que perdeu na prisão e cicatrizar quase todas as feridas, saiu só com a roupa do corpo. Não tinha mais nem documentos. Mas viu que não era a única. O hospital, para onde a levaram, era como um oásis no meio do caos. Só havia destruição. Igrejas incendiadas, fogueiras em praças públicas, feitas com bíblias e documentos públicos, corpos para todo lado. O mau cheiro, a fumaça e a poeira eram insuportáveis.

Foi para a casa do pai. Estava destruída também. Nem sinal dele, de seus três cachorros e nem dos vizinhos. Era um monte de ruínas. Depois de muito perguntar veio o soco no peito: todos mortos. Os paredões tornaram-se comuns durante a revolução. Morria-se por ser militar ou religioso, pelas mãos dos anarquistas e comunistas, por ser anarquista pelas mãos dos militares e comunistas, por ser comunista pelas mãos dos militares e anarquistas, e por ser do povo pelas mãos de quem atravessasse seu caminho primeiro. E agora, por ser povo, morria-se pelas mãos do próprio povo, caso atravessasse o caminho entre a turba e alguma esperança de alimento. Foi alertada por um grupo que revirava os escombros.

Apesar das cenas de vitória descritas no rádio, não sabia mais se tinha vencido. O Estado caiu, mas não via como aquele povo, cuja única preocupação agora era sobreviver, e para conseguir pareciam capazes de tudo, pudesse criar comunidades libertárias. Os revolucionários, que ainda não sabia se eram só anarquistas ou uma coligação entre anarquistas e comunistas, agora eram o poder. E o poder não tinha sido o seu objetivo da revolução. Ela queria vê-lo destruído.

“So, so you think you can tell

Heaven from hell?

Blue skies from pain?”

Sentou sobre as pedras e chorou.

Miguel. Queria seu abraço. Como quando voltava das manifestações machucada. Precisava que ele beijasse seu coração, como fazia com seus ferimentos.

O prédio estava de pé. Quase todos os apartamentos com os vidros das janelas quebrados. Subiu pelas escadas empoeiradas. No primeiro dia que esteve ali também foi pelas escadas. Ele reclamou, mas o elevador estava quebrado e ela adorou a brincadeira. Subia esbanjando energia sob os olhos admirados dele. Quando entraram, ele tímido e ofegante, oferecendo um café, uma bebida, e ela o puxou pela blusa e o beijou, com a mesma energia com que subira os quatorze lances de escada.

Mas agora sentia-se cansada. A porta estava aberta, fora arrombada. Sentiu o vazio da presença dele. Não estava mais ali fazia tempo. O que não levaram deixaram pelo chão. Tropeçou num guia de viagens. Prestara atenção nele por causa dos guias. Parecia que pretendia dar a volta ao mundo. Ficou curiosa. Quando descobriu que ele os lia porque mal era capaz de se dirigir à biblioteca em que ela trabalhava, tamanho o pânico de sair de casa. Ficou fascinada. Nunca disse isso a ele.

No meio da poeira e destroços, do que fora seu refúgio um dia, encontrou caído no chão, quase debaixo da cama, o bilhete. “se der eu volto, te amo, G”. Estava brava naquela manhã, saiu antes que ele acordasse. Brigaram quase a noite toda. O país em ebulição, precisando dela, ele tentando convencê-la a ficar, trancada num apartamento como uma covarde!…

Olhando pela janela do quarto, “os olhos fixos, do outro lado do pátio, na parede do prédio defronte, sem saber o que fazer”… lembrou de Tomas quando Tereza invadiu seu apartamento e ele, sentindo um amor inexplicável, não sabia o que fazer com ela. Quando ela irrompeu pela porta de Miguel ele soube exatamente o que fazer. Para ele não havia o que escolher, ela que injetou vida à sua mera existência, ele dizia. Coube a ela a escolha. Sua vida, tudo o que acreditava ou o seu amor por ele. Quando as coisas acontecem uma única vez a vida parece perder o seu peso. A vida, antes tão cheia de expectativas, ficara leve demais, de uma leveza insustentável…

Deitou-se na cama, que agora mais parecia um cemitério de memórias. A lápide, uma peça de roupa dele, que ainda estava sobre o colchão nu. O que teria acontecido? Fora atrás dela? Deixara tudo para trás, inclusive seu medo, para encontrá-la? A corajosa era ela, a mulher de mil causas, como ele dizia. Fazia tantas coisas ao mesmo tempo, lia um livro numa noite, saltava de cachoeiras, mas não teve coragem de ficar.

Nunca dissera que na verdade ele era o corajoso, e que admirava sua coragem. Ele tinha coragem de ficar, de saber exatamente quem era, assumir seus fracassos, seus medos e ficar. Ela precisava fugir. Correr o mundo, fazer mil coisas para não dar tempo de descobrir quem era. Ficar seria olhar em seus olhos toda manhã, se ver neles e ter que se encarar. Encarar que a vida era só isso mesmo, nada mais, viver cada dia o melhor possível. Aterrorizada, ela fugiu.

Nos olhos de seu torturador ela se viu. Viu que não podia mudar o mundo, que sendo um sonho ou um pesadelo ele continuaria a girar, sem o menor sentido. Não importava o quanto mudasse, tudo aconteceria de novo e de novo e continuaria a acontecer infinitamente. A revolução dentro dela chegara ao seu fim, entendia tudo finalmente. A vida não acontece duas vezes, para sabermos qual escolha é a certa. Vivemos só uma vez, sem ensaio, e uma vez é muito pouco. Não queria mais mudar o mundo, o mundo era ela e só queria dividi-lo agora com Miguel.

“How I wish

How I wish you were here

We’re just two lost souls

Swimming in a fish bowl

Year after year

Running over the same old ground

What have we found?

The same old fears

Wish you were here”

Cantou baixinho enquanto soluçava.

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