Reflexões pandêmicas: Aprender a desaparecer

É no silêncio que eles se aproximam. Eu acho. Pra mim. Vejo-os chegando. Os insetos. Sentado. Olhos longe. O tédio e o tempo espremendo o corpo e a mente. Carne prensada. Aí eu faço um chimarrão e procuro um lugar. Dentro das possibilidades. Dentro do resumido espaço nosso. Temos nossos espaços reduzidos, mas sempre, com um pouco de imaginação da pra inventar outro. Lugar.
Lugar de fugir. Um não lugar. De ficar. Mas de não estar. Lugar de perder-se. Como água que escorre pelos poros do mundo. Lugar de chimarrão e uma musiquinha no telefone. Aquela rádio que só toca sucessos antigos.
Os sucessos antigos tem a capacidade de fazer uma mente antiga relembrar. Memória é vida. Viajar. Nas sensações que certa música te trouxe uma vez. Boas, ruins. Sensações. Situações. Como eras? Onde estavas? Com quem estavas?
Bom. E ruim. Dá uma sensação de perda. Mas traz um sorriso estranho aos lábios. Coisa acontecida e vista hoje com olhos outros. Podia ser diferente? E se fosse? Não foi. Seria. Dane-se. O chimarrão quente queima a garganta. E faz a gente mergulhar em outra dimensão. Pelo menos eu. Eu mergulho. No silêncio dos barulhos que me compõem eu paro para vê-los. Acho que eles me notam também. Sempre achei que tinha conexões com as coisas. Sabe como é? Tipo uma energia. Coisa de super-herói. Quando era pequeno sonhava que corria e saltava… e meu salto era infindável. Era quase um voo. Sonhava sempre o mesmo sonho. Cheguei a achar certa vez que poderia voar. Cai uns tombos e desisti. Alarme falso. Voar não era meu superpoder, ainda estou pesquisando. Acredito que um dia descobrirei.
Tenho percebido que os eletrodomésticos sofrem uma reação estranha na minha presença. Minha televisão só liga quando quer. Tenho que pedir pra mulher ou pra minha filha pra ligar. Então a danada não se faz de difícil e puf!! Ligadinha. Eu tento, tento e ela nada!! Acredito que exerço uma certa vibração “energética” que meus aparelhos acabam estragando ou ficam de mal comigo. Quando meu computador antigo tinha um problema e eu relatava o problema para o técnico ele dizia: “Bah, isso é mole, é só fazer assim e assim e tá tudo pronto.” O cara chegava, passava o dia todo mexendo, não descobria o defeito e eu tinha que mandar o danado pra outra cidade. Sempre assim. Acho que era um tipo de positivo e negativo, energias que se anulavam. Mas era.
Ainda me preocupo com isso. É por isso que mal sei mexer no meu celular. O básico. Pra não passar vergonha. E olha que passo cada uma…
Mas então eu procuro esses lugares. Como estava falando. Lugares que apaguem uma mesma imagem. Nessa pandemia já sei quantos buracos tem no muro, quantas goteiras tem no telhado da área, quantos espinhos há no meu cacto… Então nesse processo de enlouquecer eu acabo procurando outra dimensão. Cadeira de praia no corredor, apertado entre o banheiro e o muro. Sombra e as árvore dos vizinhos sobre o muro. A laje das peças dos fundos, ao lado de uma caixa de água. E a visão verde das árvores que não me deixam ver para o outro lado. Mas é bom. Verde. O verde é sempre bom. Subo na escada. Cadeira em um braço, chimarrão no outro, o telefone/rádio no bolso e ali me sento. E no corredor úmido do banheiro com o muro do vizinho também. Apertado. Mas é diferente. Economizo o olhar. Parede. Corredor.
Então fico ali. Sentado com os insetos. Abelhas, mosquinhas, camotins, libélulas, cascudinhos de tudo que é cor e tamanho. Fico olhando a bicharada nas árvores. Frenéticos, de flor em flor, zunindo, chegando perto de mim, mais perto, mais perto… e eu ali. Junto com meu tédio. Observando.
A vida da bicharada não é fácil não. Não param um segundo. E eu ali com meu tédio. Olhos tristes de presidiário pandêmico. A garganta repleta de água quente. A cabeça vazando…
Já cortei os cabelos de tudo que foi jeito. Eu não, minha mulher. Não me arrisco a ir em um barbeiro. Gosto de insetos, não de vírus. Ela assumiu o papel de minha “consultora capilar.” E temos feito coisas fantásticas com minha cabeça.
Com a barba também. Já pintei de branca, ficou uma merda, cortei, deixei bigode, sem bigode, rala, grande, vasta, discreta, séria, despojada, barba de malvadão e coisa e tal… mas sempre fiquei igual.
O cabelo também. Quando me quebrei cortei. Tinha eles longos, mas tinha uma careca enorme bem no meio da cabeça, aproveitei o braço quebrado e cortei. Me apavorei. Estava acostumado com o cabelão. Agora não, de tanto mexer no cabelo radicalizei e detonei. Carecão. Fiquei esquisito. Não sei se os insetos vão gostar. Será que vão me reconhecer?
Já salvei um camotim umas cinco vezes. O bicho vai tomar água na tigela dos cachorros e acaba caindo. Lá vou eu com uma varinha: “Segura, segura…” e retiro o coitado da água. Espero que seja o mesmo. O danado só dá uma caminhadinha no sol, bate as asas e vai embora, nem diz obrigado. Mas eu entendo. Estamos vivendo um período estressante…
Sei que, agora, olho pra esses bichos com olhos diferentes. Esses dias encontrei uma aranha espinhenta, achei que era um ET. Bicho esquisito. Uma teia enorme e grossa. Fiquei assustado. Todo tipo de criatura resolveu aparecer depois que os humanos deram um tempo né? Então fui procurar saber mais sobre a belezinha espinhenta. Aranha de jardim, inofensiva. Quase dei nome pra ela. Mas sua teia ficava no meio do trânsito, tivemos que troca-la de lugar…Ela não gostou muito. Desapareceu.
Desaparecer é uma coisa que os insetos fazem com maestria. Desaparecer.

Sobre Ronie Von Rosa Martins 27 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*