Por Milton T. Mendonça
O semestre se fora e parecia que nada mudara em sua vida. Tudo continuava como no primeiro dia que a vira.
Na verdade algo mudara: Não sentia mais raiva. Ficara evidente que não conseguiria fugir daquele sentimento que o assustava.
Lembrava-se do momento que pressentira o inevitável. Ainda conseguia sentir o calafrio percorrendo seus membros e se alojando em algum lugar entre suas entranhas. Tentara em vão se afastar – não conseguira. Chegara ao cumulo de ofendê-la para iniciar uma briga, ou fazê-la espalhar maledicências a seu respeito e esta atitude quebrar o feitiço que o prendia, mas ela o surpreendera. Seu silêncio o atordoara.
Deixara de contabilizar o número de vezes que se enganara há muito tempo atrás. Simplesmente cansara de tentar. Não queria se relacionar novamente. Esse negócio de amor era invenção dos poetas – sempre dizia para si mesmo – a única coisa real é o sexo. Mas isso felizmente não era problema nos dias atuais…
– O quê?! Perguntou-se ao ouvir o barulho ensurdecedor.
O automóvel freou parando a poucos milímetros de suas pernas. O som estridente se espalhou pela redondeza ricocheteando nos prédios, àquela hora, abandonados. Levantou-se pálido e mirou o pára-brisa. Não podia enxergar nada lá dentro. O reflexo da luz do poste no vidro fazia seus olhos arderem. Contornou o automóvel e se dirigiu à janela fechada. Bateu com o nó dos dedos e esperou impaciente. Via-se o contorno de uma pessoa debruçada sobre o volante.
Experimentou a porta descobrindo-a destravada, abriu-a e debruçou sobre o banco do passageiro. O cheiro do interior era perturbador. Tudo estava revirado. Do porta-luvas aberto, abarrotado de papeletas de multa um revolver de grosso calibre, com um desenho futurista, tentava inutilmente manter tudo organizado. O gato malhado entre as grades de uma gaiola o olhava apavorado. Levantou-a depositando no assento trazeiro longe da fumaça que penetrava pelos orifícios do painel.
– Meu Deus! – Exclamou assustado – Tomara que não esteja morto.
Tocou o ombro do motorista desacordado e sentiu um arrepio: Seus dedos afundaram como se tocasse um boneco de silicone. A vertigem quase o derrubou ao ver o sangue abundante descer o pescoço contorcido. Agarrou os cabelos longos e puxou para trás na tentativa de levantar sua cabeça e se viu com eles nas mãos. Haviam se desprendido e em seu lugar uma cabeça redonda como uma bola inflada jazia caída, virada para a janela oposta, deixando-o momentaneamente em transe – letárgico.
Seus olhos percorreram o corpo inerte e pararam subitamente. O tronco sobre o banco, findava sem pernas. O gosto do suco gástrico correu a garganta e anuviou sua vista o fazendo dobrar sobre si mesmo tocando a coisa com a cabeça. O engulho de nojo o fez vomitar impulsionando-o para fora do veículo – sentiu-se desfalecer.
Deixou-se cair na calçada resfolegando. Pensou correr, fugir daquele lugar maldito. Ajoelhou-se na tentativa de se por de pé – o corpo todo tremia.
Buscou força no mais profundo de seu ser e num movimento rápido levantou-se. As mãos estendidas, suadas, seguravam as pernas. A cabeça baixa, os olhos fechados. Faltava-lhe coragem para dar o passo necessário que o levaria dalí. Estava em choque.
– Hei você!
A voz penetrou em seus ouvidos. O arrepio subiu sua espinha eriçando os cabelos da nuca.
– Hei você!
Ouviu outra vez e percebeu outros sons a sua volta. Tinha medo de abrir os olhos.
Algo tocou seu ombro – encolheu-se involuntariamente.
Ouviu risadas e musica ao fundo.
– Você não viu a placa?
A voz falou próximo ao seu rosto
– É proibido transitar por esse local. Estamos fazendo uma filmagem…
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