Por Milton T. Mendonça
Camilo era um sujeito simplório, não tinha ido muito longe nos estudos, não acreditava em nada e não tinha sonhos. Levantava de manhã e ia trabalhar na fabrica onde todos que o conheciam trabalhavam. Após o trabalho, à tardinha, passava no boteco para tomar uma, ou duas pingas e uma cerveja, depois, ia para casa jantar. Era recém-casado, não tinha mais do que vinte cinco anos.
Foi num final de semana que tudo começou a mudar. Ele precisou ir lá para as bandas do cafundó, atrás de um galo e de uma galinha caipira, que a mulher resolvera criar nos fundos da casa e, esquecido da vida na venda do seu Joaquim, junto com o compadre Anacleto, ele perdeu a hora e, quando saiu da vila e se jogou na estrada com o seu velho Fiat, a noite já estava a caminho da madrugada.
Camilo, meio cego, mas bem tonto pelo excesso da cajibrina, não reparou num vulto que atravessava a estrada, o atropelando. Ouvindo o tremendo barulho, parou o carro com uma brecada seca, abriu a porta e desceu aos tropeções, indo parar próximo ao monte de pano imóvel, caído a pouca distância da roda traseira do veículo.
Ele, então, se debruçou junto ao atropelado pensando ser uma criança. Ao levantá-lo, porém, percebeu que se enganara, a roupa larga cobria algo mais parecido com um animal, coisa que o deixou espantado e confuso.
Mesmo na sua obtusidade, Camilo, tinha escondido em algum lugar, uma consciência que o impelia a se preocupar com o que acontecia à sua volta. Sem saber o que fazer, o levou para casa. Depois de acomoda-lo, procurou sinais de ferimentos. Não encontrou nenhum. Vendo que o bichinho estava desmaiado, o deixou dentro de uma caixa de papelão e passou o resto da madrugada, e o dia seguinte inteiro, observando, vez ou outra, mas sem mostrá-lo a ninguém.
Quando chegou do boteco, no final do segundo dia, foi até o esconderijo e pegou a caixa. Ao abri-la, percebeu que o animalzinho estava sentado no fundo, todo vestido e com um chapéu de três pontas na cabeça.
Levantou-se quando percebeu que a caixa estava aberta e olhou fixamente para Camilo, que se espantou com a expressão séria e com os seus olhos grandes, verdes e brilhantes.
– Ah! Meu caro senhor – disse a personagem – poderia por obséquio me informar onde estou?
– Está na minha casa, fui eu quem o atropelou.
– Ah! foi? E o que pretende fazer comigo, agora?
– Eu?! – Camilo pego desprevenido, respondeu espantado – nada! Quer dizer, não sei!
– Ah! Que tal me deixar ir embora? Falou de maneira simpática, com um pequeno sorriso nos lábios finos e graciosos.
– Ir embora?!
– Sim! O monstrinho gritou com o tom de voz enérgico e quase nas pontas dos pés.
– Está bem! Exclamou de cara amarrada deixando a pequena visita espantada com sua ingenuidade.
– Está brincando comigo? Resmungou furibunda, a pequena criatura.
– Não, que isso?!
Camilo pegou a caixa e a levou para fora, depositou no chão do quintal, ficando alguns passos de distância. Agitou as mãos, dando a entender que ele podia ir embora e o pequenino saiu, ameaçando fugir correndo. Camilo não se mexeu. E ele não fugiu. Em vez disso, se voltou para o rapaz imberbe à sua frente e pediu que se abaixasse. Retirou do bolso do seu colete um amuleto colorido, gravado com sinais obscuros e lhe entregou. Mas não antes de lhe avisar que com aquela peça mágica, ele poderia ter tudo quanto quisesse. Despediu-se e atravessou o portão saindo para a rua, desaparecendo de vista.
Camilo, como era de seu feitio, demorou um pouco para perceber o que tinha nas mãos e, quando finalmente entendeu o que lhe tinha acontecido, correu para casa e escondeu o precioso objeto. A partir desse dia nada mais foi o mesmo. Camilo começou a pensar nas oportunidades que aquilo poderia lhe trazer, e se acostumou a pensar no futuro, coisa que deixara de fazer desde que sua família, quando tinha apenas nove anos, passara a achá-lo um idiota, um leso da cabeça. Não se lembrava porque, nem como isso começara . Mas por qualquer razão, se tornara verdade para ele.
Alguns dias depois, olhando no espelho do banheiro, ao se levantar, percebeu que era jovem e bem apessoado. Qualidades que nem sabia ser portador. Sentou-se na privada e retirou o amuleto do bolso, sentindo sua textura lisa, sem nenhuma reentrância que o desqualificasse. Olhou-o contra a luz e nada viu. Era totalmente opaco.
– Como fazer para usufruir seus poderes? Perguntou alto – ninguém respondeu.
Bateram à porta e rapidamente o escondeu.
Sua mulher, que esperava do lado de fora, o olhou apreensiva.
– O que houve? Perguntou séria.
– Nada que eu saiba. Respondeu com um pequeno sorriso de triunfo na boca larga, o deixando diferente daquele rapaz angustiado que ela conhecia e que lhe inspirava compaixão.
-Vai perder a hora. Resmungou entre dentes.
Camilo tomou seu café e, após beijar a mulher no rosto, foi em busca do ônibus que o levaria ao trabalho.
Ao chegar na fabrica, os conhecidos perceberam algo diferente. Mais alegre e comunicativo, deixava à sua volta um ambiente de afetividade e cooperação, trazendo para perto de si pessoas que até então tinham passado à larga. Parara de beber, se tornando uma pessoa caseira com gosto para a manutenção. Os amigos, que agora abundavam, contratavam-no e logo comprou um utilitário, que além de facilitar a locomoção e servir de transporte para suas ferramentas, servia à vizinhança, e isso, o transformou em uma pessoa conhecida e querida por todos.
No trabalho, fora promovido, e como chefe de seção aumentou a produtividade e diminuiu os acidentes de trabalho. Sua preocupação com o bem-estar do próximo virara lenda. E, poucos anos depois, foi convidado para se candidatar a prefeito, depois a deputado e agora, no final do mandato de senador, começava a pensar em se candidatar a presidente.
Nesses anos todo, sempre em segredo, retirava o talismã de seu esconderijo e o segurava esfregando na testa, na boca e nas mãos, acreditando ter descoberto como fazê-lo funcionar. Durante esses anos, guardara no peito a certeza que podia ter tudo o quanto quisesse e nada no mundo o prejudicaria.Essa certeza o confortava, aquecendo sua alma nos momentos em que uma decisão importante o deixava gelado e pronto a se esconder, com medo de não ser competente o bastante, ou pior, quando se considerava com mania de grandeza e seu objetivo nobre demais ou grande demais para alguém tão medíocre.
Certo dia, quando voltava para casa, ao entrar em seu carro estacionado na sua vaga privativa, encontrara o pequeno gnomo sentado à sua espera no banco de trás, escondido na penumbra. Ao vê-lo, Camilo ficou muito assustado.
– Sempre tive medo que aparecesse e tomasse meu talismã. Falou resignado, se sentando ao volante.
– Ah! Não fique preocupado! Respondeu o pequeno individuo – o talismã não tem nenhum poder. Naquele dia eu pensei que como todos que encontrara até então, você também tentaria me roubar e me fazer mal. Aí lhe dei aquele amuleto falso.
– Como?! Perguntou Camilo perturbado.
– Ah! É falso! Estou aqui para avisá-lo que é falso. Falso! Falso! Falso!
Desceu do carro e saiu rindo, dando cambalhotas e gritando: Falso! Falso! Falso!
Camilo, com os olhos arregalados e uma expressão de incredulidade no rosto, ficou olhando aquela pequena figura desaparecer, dançando, no final da rua.
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