Por Milton T. Mendonça
O homem bateu o machado com força cortando em pedaços o animal sobre a mesa feita de tronco de árvore. Parou com o machado no ar e concentrou a atenção no barulho de campainha vindo da loja. Pegou o pano sobre a pia e limpou as mãos Empurrou a porta dupla que separava o pequeno abatedouro e saiu atrás do balcão de metal. A mulher o cumprimentou sorrindo.
– Bom dia seu Jorge como está o alcatra hoje?
– Está bom. Quanto vai?
– Dois quilos, mas pode deixar a gordura. Tira apenas o sebo.
– Alcatra não tem sebo senhora.
– Sei! Mas tira assim mesmo.
Replicou abrindo o sorriso largo.
O açougueiro embrulhou a carne, irritado e entregou a mulher pegando o dinheiro de suas mãos com um puchão. Entregou o troco e despediu-a sem comentário.
Retornou ao trabalho despedaçando com ódio o animal que esperava no cepo. Enxugou a testa com as costas da mão e limpou o suor com raiva.
– Maldita!
Exclamou alto.
A mulher ainda jovem e bela não mais que trinta e poucos anos chegou a casa trocou o sapato desconfortável pelo chinelo e correu á cozinha depositando a carne sobre a pia. O marido chegaria as oito e exigiria o jantar na mesa como sempre. Temperou-a e se dirigiu ao banheiro para se refrescar antes de continuar a tarefa. O dia fora duro e excessivamente quente.
O carro estacionou na garagem e o homem de terno escuro e pasta de executivo na mão se encaminhou para a porta da casa. Abriu-a e entrou. A sala estava às escuras não havia sinal de que Elisa estivesse em casa. “Não acredito!” Exclamou irritado. “Está atrasada novamente.” Foi ao bar encheu o copo retirou uma pedra de gelo do balde jogou-o dentro mexeu com o dedo tomando um gole longo.
“Ah! Como precisava disso.” Murmurou para si mesmo. Acendeu a luz e ligou a TV.
Sentou-se no sofá tirou o sapato dos pés ficando somente de meias. Tomou outro gole da bebida relaxou o corpo e prestou atenção ao jornal.
As noticias não o impressionou. “Nada de novo debaixo do sol.” Resmungou olhando o relógio de pulso. “Onde ela está?” Perguntou-se irritado. Passava das oito e trinta.
Levantou-se pegou o celular no bolso do paletó que deixara na cadeira e apertou o numero um. O telefone tocou três vezes antes de perceber que o som de chamado vinha da casa. Olhou em volta surpreso e viu a bolsa da esposa em cima da mesa. Aproximou-se e abriu-a. O celular piscou para ele enquanto tilintava exigindo urgência.
“Deve estar no banheiro.” Pensou alegre. Detestava quando ela demorava a chegar. Abriu o sorriso condescendente que a premiava quando sentia que estava se rebelando contra seu domínio e foi a sua procura.
Foi ao quarto e viu os sapatos jogados no chão e o vestido em cima da cama. Dirigiu-se ao banheiro e empurrou a porta de vagar. Imaginou-a no chuveiro e imediatamente ficou excitado com a expectativa de vê-la nua.
Seu olhar se dirigiu para o Box e sentiu um tremor ao perceber pelo canto dos olhos que algo estava errado. O excesso de vermelho no banheiro branco o fez retrair-se. O milésimo de segundo que precedeu a verdade milhares de situações bizarras passaram pela sua cabeça, mas nenhuma foi tão apavorante quanto a realidade. Ela estava caída ensanguentada no chão frio e uma poça de sangue havia se formado sobre sua cabeça e pescoço.
O grito saiu de sua garganta como o uivo de um lobo preso na armadilha mortal de algum caçador sádico. O fôlego despareceu e seu peito arfou desesperado tentando capturar um pouco de oxigênio. Caiu sentado no corredor gritando alucinado.
– Não pode ser!
Gritou em agonia apertando as mãos na cabeça.
– Devo estar sonhando.
Antes de desmaiar ouviu o barulho da porta se abrir e alguém entrar correndo. Rezou para ser seu assassino que chegava.
Abriu os olhos e sua íris se contraiu com o excesso de luz. Aos poucos sua vista foi desanuviando e conseguiu focar o homem de terno azul conversando com o outro de jaleco branco. Olhou em volta e pode ver várias camas algumas vazias, mas na maioria com pessoas prostradas sobre elas – estava em um hospital. Levantou a cabeça e o médico se aproximou tomando seu pulso.
– Bom dia!
Exclamou educado.
– Finalmente acordou. Espero que esteja se sentindo bem…
– Porque estou aqui? Onde está Elisa?
– Calma! Uma coisa de cada vez… Tome isso vai fazer se sentir melhor.
– Não quero nada disso! Onde está Elisa?
– Esse é o detetive José Maria. Converse com Ele… Mas tome o remédio vai se sentir melhor.
O medico colocou o comprimido em sua boca obrigando-o beber a água em seguida. Engoliu a pílula com uma careta.
O açougueiro terminou de moer a carne limpou a sujeira da máquina colocando tudo dentro do saco preto de plástico. Abaixou a porta da loja colocou o saco plástico dentro do furgão e saiu devagar em direção à área menos populosa da cidade. Depois de algum tempo dirigindo virou a direita e penetrou na estrada de terra chegando ao canil. Buzinou várias vezes até o portão de ferro ser aberto. Dirigiu-se a casa dos funcionários onde foi recebido pelo zelador com a costumeira cara amarrada. Desceu do carro foi até sua traseira e retirou o saco de carne moída entregando-o ao homem fazendo-o assinar o recibo.
– Os animais estão indóceis hoje, não é? Deve ser fome.
– Esses bichos estúpidos! Eles sabem que a comida chega sempre a tarde. Deviam estar contentes hoje vão comer carne… Ontem comeram ração.
– Cuide bem deles… São animais de vigia. Precisam ser bem alimentados.
– Sei! Sei! Já me falaram.
– Então até logo!
O açougueiro subiu no furgão e desapareceu na estrada poeirenta.
– Sua esposa foi assassinada!
O detetive exclamou de supetão.
– Como?
– Nós a encontramos no banheiro com o pescoço cortado. Foi degolada.
A lembrança do corpo de Elisa esvaindo em sangue quase o fez vomitar. Deixou a cabeça cair no travesseiro e colocou o braço sobre o rosto. Não queria falar com ninguém.
– Infelizmente precisamos de seu depoimento.
O detetive tocou seu ombro gentilmente.
– Eu não sei de nada. Entrei no banheiro e a vi caída lá…
Sentou-se na cama e falou com raiva.
– Precisa pegar o assassino!
– Nós o pegaremos. Não viu nada de estranho quando chegou?
– Não! Fiz como sempre faço. Entrei tomei uma bebida e como Elisa não estava liguei a televisão e assisti o jornal.
– A janela do quarto estava aberta foi o senhor quem abriu?
– Não. Elisa tinha esse costume abria sempre que chegava a casa. Não sei como não olhei isso quando cheguei… Pensei que não estivesse.
– Ela tinha algum inimigo… Alguém que gostaria de vê-la morta?
– Por Deus, não! Ela era a mulher mais doce que jamais conhecera. Todos a amavam.
– Reclamou de algo ou alguém que a incomodava?
– Ela estava feliz porque nos decidimos engravidar.
– Quanto tempo foram casados?
– Cinco anos… Cinco anos felizes.
O homem baixou a cabeça e soluçou sentido.
– Tome meu cartão caso se lembre de algo novo me ligue. Talvez o procure novamente… Até logo.
O detetive se afastou do leito e desapareceu nas entranhas do hospital. Robson ficou olhando-o pelas costas até desaparecer deitando a cabeça no travesseiro em seguida com um resfolegar doloroso.
O dia passou lento e sufocante. Ao meio dia fora liberado e voltou para casa, desolado. Entrou na sala vazia e foi ao banheiro. O chão continuava sujo de sangue e com muita raiva esfregou com força limpando todo resquício do acontecimento trágico. Em seguida caiu na cama e dormiu profundamente.
A mulher desceu o elevador do prédio e foi ao subsolo em busca do automóvel. A porta se abriu e ela desceu caminhando rápido por entre as colunas. Seu carro, um Ford KA, a esperava estacionado onde o deixara naquela manhã quando chegara ao trabalho. O local estava deserto e um arrepio cruzou seu corpo como uma premonição. Correu até alcançá-lo entrou precipitadamente ligou o motor e disparou para a saída.
A rua movimentada tranquilizou-a e cantarolando se dirigiu ao supermercado em busca do jantar. Encontrou a única vaga disponível um pouco longe da porta do prédio, mas isso não a incomodou a noite estava quente e a leve brisa apesar de morna acariciava o corpo como mãos suaves. Entrou e saiu rápido com os pacotes nas mãos. Chegou ao automóvel e confusa não sabia como fazer para pegar a chave. Olhou para os lados e viu o homem se aproximando de cabeça baixa. O chapéu enterrado na cabeça e a capa sobre o corpo não a impressionou. Queria apenas alguém que a ajudasse abrir a porta.
– Senhor!
Exclamou alto
– Pode me ajudar?
O homem se aproximou pegou sua bolsa e retirou a chave abrindo a porta. A mulher abaixou-se para colocar os pacotes no banco do carona e a sombra cruzou seus olhos. Antes de entender o que estava acontecendo sentiu uma forte dor na nuca apagando de imediato caindo como uma pedra com meio corpo sobre os pacotes que já estavam sobre o assento. O homem a empurrou para dentro deu a volta e saiu com o carro. Passou pela guarita com o chapéu tapando totalmente o rosto e desapareceu na cidade tumultuada.
O detetive José Maria chegou à delegacia um pouco antes das dez horas da manhã e terminou de ler o boletim de ocorrência que estava sobre sua mesa pouco depois das onze.
“Mais uma desaparecida!” Não é possível!” Murmurou consigo mesmo relendo as informações.
Digitou o nome da vítima o endereço e o motivo que fizera seu namorado denunciar seu desparecimento no computador e cruzou os dados.
“È! Mais uma mesmo.” Buscou pela milésima vez os desaparecimentos inexplicáveis nos últimos dez anos e o mapa surgiu na tela. O computador traçou a rota das vitimas confirmando suas suspeitas. Um assassino serial estava na cidade.
Levantou-se e se encaminhou para a sala do delegado.
– Posso entrar?
Perguntou abrindo a porta.
– Entre, entre!
O delegado exclamou ao vê-lo.
– Estamos com um problema. Um serial está na cidade.
– Tem certeza disso? Não quero deixar a cidade apavorada sem uma certeza absoluta.
Seu superior olhou-o expectante.
O detetive jogou a cópia do mapa na mesa e sentou-se na cadeira.
– Alguma pista?
Seu chefe perguntou terminando de ler.
– Uma suspeita… Nada comprovada apenas intuição.
– Do que precisa?
– Tempo delegado. Preciso de tempo. Quero ficar com apenas esse caso…
– Certo… certo! Devolva o restante para a tenente que ela redistribuirá.
– Não me decepcione Zé Maria…
O delegado olhou-o firme.
José Maria se levantou tocou na testa com os dedos da mão direita e se afastou saindo da sala fechando a porta atrás de si.
Robson acordou pouco depois das quatorze horas com o telefone tocando. Estendeu o braço dormente e pegou o fone de cima do criado mudo ao lado da cama.
– Alô! Exclamou cansado.
– Sr. Robson?
A voz feminina perguntou do outro lado.
– Aqui é do necrotério municipal. O senhor já pode retirar o corpo de sua esposa.
– Certo. Mandarei a funerária…
– O senhor já tem uma funerária? Poderia sugerir algumas caso precise.
-= Seria bom… Não conheço nenhuma.
A mulher de voz macia passou o telefone de duas funerárias. Anotou em um papel que encontrou próximo ao telefone e desligou.
Levantou-se cansado e foi ao banheiro tomar banho. Saiu um pouco mais revigorado vestiu-se e andou trôpego até a cozinha.
A carne temperada em cima da pia o fez suspirar fazendo-o engolir o soluço que invadiu sua garganta forçando passagem.
Colocou dois bifes na frigideira e levou ao fogo. Precisava comer algo. Enquanto esperava a frigideira esquentar ouviu a campainha tocar insistente na porta da rua. Desligou o fogo e se dirigiu para lá.
Abriu a porta sem olhar pelo olho mágico se deparando com o detetive parado em sua soleira.
– Boa tarde!
Ouviu o cumprimento e apertou a mão do visitante estendida em sua direção.
– Fiquei sabendo que sua esposa está liberada pela perícia já pode providenciar o enterro… Mas estou aqui por outro motivo: Gostaria de dar uma olhada na cena do crime…
– É necessário mesmo detetive? Já foi remexido por todo mundo?
Perguntou demonstrando sua irritação.
– É meu trabalho. Posso conseguir um mandado, mas não é isso que queremos, não é? Tanto eu como o senhor temos o mesmo interesse. Pegar o assassino… Ou não?
– Sim! Desculpe-me. Entre por favor.
– Obrigado.
– Fique a vontade. Estou preparando algo para comer… Faz-me companhia?
– Um café seria bom…
Separam-se e o detetive José Maria transpôs a porta da cozinha saindo no quintal. Olhou o local com muito cuidado subindo no banco e olhando por cima do muro alto que o separava da rua pouco movimentada terminando a vistoria em frente a janela do quarto do casal. Percebeu algumas manchas escuras com pedaços de materiais desconhecidos. A mesma encontrada no muro do lado de fora. Com a pinça colocou os separados em pequenos sacos plásticos que foram dobrados com cuidado e enfiado no bolso da calça.
Retornou ao interior da casa e se aproximou de Robson.
– O cheiro está muito bom! Acho que vou aceitar seu convite…
– Sente-se detetive já vou servi-lo.
– José Maria… Pode me chamar de José Maria.
– E Então encontrou alguma pista?
– Ainda é cedo para dizer, mas talvez tenha encontrado algo.
O cozinheiro parou rígido e olhou sério para o homem sentado á mesa.
– Não se entusiasme é apenas um talvez…
Serviu o convidado e comeram em silêncio por algum tempo.
– Carne macia onde o senhor compra?
– Foi Elisa. Ela sempre passa no açougue antes de vir para casa depois do trabalho.
– Então foi o último lugar que passou antes do… Acidente?
– É provável. O senhor acha que pode ter alguma ligação?
– Em uma investigação nada pode ser deixado ao acaso.
– Não creio que encontre algo! O açougueiro é meio mal humorado, mas parece ser gente de bem… É educado.
– Nunca se sabe… O ser humano é uma incógnita. Debaixo de boas maneiras pode existir um animal cruel e sanguinário.
Ficaram em silencio por algum tempo enquanto terminavam o pequeno almoço. Após o último bocado o detetive levantou-se constrangido.
– Não quero parecer cachorro magro, mas preciso verificar umas coisas…
– Não deixe de me avisar caso encontre algo relevante…
Falou ao se despedir já na porta da rua. Esperou o carro do detetive desaparecer entrando em seguida.
O silêncio da sala era perturbador o que o fez cair prostrado no sofá. Meditou por horas no ambiente obscurecida pela cortina amontoando desespero e frustração suficiente para fazer desaparecer do mapa uma metrópole caso descobrisse uma maneira de detonar toda a energia acumulada.
O detetive José Maria entrou na loja de carnes e observou com cuidado cada centímetro a sua volta antes de apertar a pequena campanhia em cima do balcão. O homem entrou no recinto ainda esfregando as mãos no pano sujo de sangue.
– Olá!
Cumprimentou frio.
– Sou o detetive José Maria.
Apresentou-se surpreendendo o açougueiro.
– Estou investigando o assassinato da dona Elisa… Ela é sua cliente, não é mesmo?
– Sim… Pobre dona Elisa. Muito exigente, mas uma ótima cliente.
– Quando a viu pela ultima vez?
– No dia do assassinato… Ela esteve aqui e levou um quilo de alcatra. Pedira para tirar o sebo. Como se alcatra tivesse sebo…
– Que hora foi isso?
– Pouco antes de fechar… No horário de sempre, aliás.
– Percebeu algo de anormal com sua pessoa… Ou naquele dia em particular.
– Não! Estava bem humorada e exigente como sempre.
José Maria não percebeu nada de extraordinário em seu interlocutor. Despediu-se e voltou à delegacia.
“Seria muita sorte, mesmo.” Resmungou ao sentar em sua mesa. “Seria ótimo ter um corpo… Unzinho só.” “Talvez seja apenas coincidência…”
Lembrou-se do material que recolhera e entregou ao técnico do laboratório pedindo urgência. Precisava de uma pista… Voltou á mesa e pegou o mapa dos desaparecimentos. Todas as mulheres tinham de vinte e cinco a trinta e cinco anos. Eram bonitas e independentes. Algumas casadas, mas a maioria solteira.
Contou-as e se surpreendeu: vinte e nove mulheres em três anos. A primeira morava em Santa Catarina a segunda e terceira no Paraná a quarta até a décima próxima a fronteira com São Paulo a restante seguia um percurso retilíneo até sua cidade com a morena reclamada pelo namorado por último. Todas desapareceram sem deixar vestígio entre sete e meia noite durante a semana. Nenhuma nos finais de semana e nenhuma em outro horário qualquer. Todas entre sete e meia noite. A única que fora deixada no local – se é que fora mais uma vítima do mesmo assassino – era Elisa.
“O que unia Elisa com as outras vítimas?”
Perguntou-se.
“O horário e o dia da semana, mas poderia ser coincidência”
Resmungou chutando o fundo da mesa com força.
O açougueiro limpou o cepo onde havia trabalhado a tarde toda moendo a carne para o canil colocou o saco preto no furgão fechou a porta do estabelecimento e se dirigiu de vagar até a estrada de terra onde virou quase batendo no barranco. Continuou seu caminho até o portão de ferro. Parou e buzinou para que o abrissem.
– Chegou bem na hora!
O zelador gritou ao vê-lo se aproximar.
– Os cães estão famintos.
– É de dois em dois dias o combinado. Não é minha culpa.
– Pode me ajudar?
– Está bem
O zelador arrastou o saco preto e jogou seu conteúdo dentro do recipiente enquanto seu Jorge revolvia com a pá de madeira a carne que trouxera misturando-a com a farinha vitaminada e água deixando que fervesse. Depois de quase uma hora no fogo o zelador continuou mexendo para agilizar o resfriamento levando a tina até o canil e distribuindo entre os diversos cochos abrigados dentro dos cubículos que os separavam do local de descanso e brincadeira, onde os animais ficavam a maior parte do tempo.
Os mastins indóceis comeram vorazmente conforme as postas de carne eram jogadas pelo açougueiro enquanto o zelador com a mangueira lavava os dejetos e enchia de água as piscinas construídas para esse fim.
A sujeira acumulada foi arrastada por um rodo de madeira até a lixeira a um canto próximo a cerca.
Três dias se passaram antes que pudesse ver o resultado do laboratório. Foi a primeira coisa que viu ao sentar em sua mesa: o envelope branco com o timbre do laboratório impresso em azul escuro e a bandeira do estado entrelaçada. Abriu-o rasgando o canto do envelope ansioso. Leu rapidamente soltando uma imprecação voltando a ler mais de vagar.
O relatório dizia que os materiais colhidos eram orgânicos e pertencia a três cachorros de raças diferentes: labrador rottweiler e pitbull. E o mais interessante é que continha em uma das amostras uma pequena quantidade de DNA humano. No espaço de comentário pedia uma prova maior para confirmar a hipótese.
O Detetive José Maria deixou cair o corpo na cadeira empurrando o encosto para trás e olhando par o teto pensativo.
“Como fora parar lá?”
Perguntou-se perplexo. Não estava preocupado com a quantidade, mas como o DNA de uma pessoa aparece nas fezes de um cachorro.
O arrepio cruzou seu corpo como uma descarga elétrica fazendo-o se levantar de um pulo e chacoalhar os ombros, horrorizado com a ideia que lhe passou pela cabeça.
Voltou a sentar-se e digitou no Google: Cães. Não sabia bem por onde começar. A resposta veio quase de imediato. Várias sugestões surgiram diante de seus olhos, mas muito geral. Depois de algumas tentativas descobriu os locais onde poderia encontrar diversas raças reunidas no mesmo lugar. Copiou os endereços e saiu em busca de resultados.
Olhou a lista pela milésima vez. O último canil a ser visitado e o mais distante prendeu sua atenção. Faltavam pouco mais de uma hora para o inicio da noite, mas não queria deixá-lo para o dia seguinte. Precisava descartar mais essa possibilidade. As respostas sobre o resultado das investigações dos outros assassinatos haviam chegado e não dera nenhuma luz ao caso. Sentia o retorno ao beco sem saída. Estava frustrado e com raiva quando ao chegar próximo à entrada do canil o furgão passou em alta velocidade e dentro dele o açougueiro. Freou o carro no impulso tamanho coice recebera no estomago. “O que estaria o açougueiro fazendo ali?” Perguntou-se espantado com a coincidência.
O zelador recebeu-o simpático e lhe mostrou o canil onde pode constatar as diversas raças de cães oferecidas pelo estabelecimento inclusive as três que procurava. Descobriu também usando de pequenos subterfúgios que o açougueiro era o responsável por trazer a carne moída. Informação que quase o fez soltar uma imprecação denunciando seu verdadeiro interesse. Despediu-se do homem pedindo um tempo para se decidir prometendo voltar outro dia.
Dirigiu devagar absorto em seus pensamentos. Passara pelo açougue e constatou como havia imaginado que estaria fechado àquela hora e voltou para a delegacia.
A jovem subiu os degraus da passarela e iniciou a travessia. A noite estava clara com uma enorme lua iluminando tudo ao redor como um holofote. Retirou da bolsa o spray de pimenta recebido de presente algumas noites atrás. Seu pai estava temeroso com o trajeto que deveria percorrer para chegar a casa. O primeiro ano de faculdade começara não fazia nem um mês. Percorreu toda a extensão do corredor até chegar do outro lado. Um único carro parado próximo à saída sob a árvore chamou sua atenção. Sacudiu os ombros imaginando o casal de namorados se beijando em seu interior e iniciou a descida resoluta. Tudo escureceu ao receber a pancada na nuca e seu corpo caiu para frente. Não soltou um gemido apenas caiu como uma pedra batendo o rosto no chão duro de cimento.
O detetive ouviu o barulho da porta de aço se abrindo e levantou a cabeça do volante. Chegara pouco antes das seis horas e esperava ansioso para conversar com o açougueiro. O excesso de acaso o deixava esperançoso. Sabia que coincidência era apenas ilusão. Tudo era consequência da causalidade. Uma coisa puxa a outra… E voilá! O fato se consuma. Mas não devia se precipitar. A suspeita precisa de provas.
Saiu do automóvel e caminhou até o edifício. Abaixou-se e ajudou o homem levantar a porta de aço assustando-o.
– Bom dia detetive! Você me assustou.
– Desculpe-me, mas preciso fazer algumas perguntas…
– Ainda sobre o assassinato de dona Elisa?
– Mais ou menos… Tenho outras perguntas.
Ao ouvir isso o açougueiro largou a porta e correu atravessando a rua e entrando no furgão. A surpresa manteve o detetive parado enquanto via seu suspeito correr em direção ao carro. De repente saindo do transe se precipitou em seu encalço sem conseguir alcançá-lo. Voltou ao seu automóvel e saiu em perseguição.
O furgão foi abalroado ao tentar atravessar o sinal vermelho causando um tumulto dando a chance de José Maria pegá-lo quando tentava fugir a pé subindo a rua em direção ao centro comercial. Algemou-o e deu um tapa em sua cabeça xingando-o e esbravejando.
– Então foi você?
Gritou em seu rosto e arrastou-o em direção ao veículo.
– Não foi eu, não, detetive.
– Cala a boca!
Bateu em sua cabeça fazendo-o calar-se.
– Você está ferrado camarada!
José Maria jogou o mapa das vítimas sobre o tampo.
– Leia!
Gritou batendo na mesa.
– Sabemos de todas… Vai pegar trezentos anos sem direito a condicional.
Seu Jorge pegou o mapa e olhou-o demoradamente. Seguindo com o dedo a trajetória do assassino em série até chegar a Elisa com a data e hora marcada ao lado do nome.
– Detetive o senhor está cometendo um erro eu não matei ninguém.
– Correu porque, então camarada? Deu vontade de fazer exercício de repente?
O açougueiro ficou calado. Antes que o detetive pudesse falar algo a porta se abriu e o delegado apareceu.
– Zé Maria venha aqui um momento.
O detetive bateu nas costas de seu Jorge se dirigindo para lá.
– O advogado dele chegou.
– Como? Que advogado? Não deu tempo de avisar ninguém…
– Você tumultua a cidade com aquela correria e prende um comerciante e ainda não percebe o que fez?
O delegado falou zangado.
– Solte-o imediatamente. A não ser que tenha algo real contra ele. Você tem algo contra ele, detetive?
– Não. Apenas suspeitas…
Murmurou respirando fundo encostando-se à parede, desanimado. Resolveu não voltar para a sala. Pediu ao delegado que liberasse seu suspeito e se dirigiu ao carro. Esperaria ele sair e o seguiria. Não o deixaria em paz até se convencer de sua inocência. Estava convicto de sua culpa. Não sabia bem por que. Algo o incomodava… Lembrou-se do pensamento assustador que tivera naquela manhã.
Viu seu Jorge sair pela porta e descer a escada. Sua expressão era de alivio. Olhou para o céu demoradamente e se encaminhou de volta ao açougue.
José Maria o seguiu de maneira que não poderia ser visto por alguém inexperiente. Parou a uma quadra de distancia do comércio e esperou. O dia passou sem novidades. Ao anoitecer viu o açougueiro colocar o saco de plástico preto no furgão fechar a loja e seguir em direção ao canil.
Manteve distancia o suficiente para não perdê-lo de vista até vê-lo atravessar o portão. Estacionou o automóvel na entrada da fazenda vizinha e correu até a cerca que fazia divisa com o seu objetivo penetrando no matagal atrás da construção. Deu vários passos afastando as folhas altas até chegar à clareira. Entrou na trilha e seguiu com cuidado tentando não ser descoberto. A lua cheia iluminava tudo com se fosse dia. Ouviu o barulho e se jogou para dentro do capão caindo sobre o monte de qualquer coisa macia e ficou rígido. A galinha com diversos pintinhos passou pelo carreiro fazendo-o sorrir aliviado. Sentou-se no chão de terra e ao se levantar seus olhos passaram pelo local onde se deitara e se deparou com os cabelos.
O susto quase o paralisou. Ficou de pé de um pulo e saiu para a trilha tremendo. Respirou fundo até se acalmar limpou o suor do rosto e voltou à mata. Com a pinça pegou o chumaço de cabelo e colocou-o no saco plástico que trazia no bolso.
Foi sorrateiramente até o barracão que fazia divisa com o matagal e o circundou abaixado. Olhou pela janela e viu a enorme maquina de moer carne sobre a estrutura de madeira. Do teto a corrente com ganchos pairava sinistra sobre sua navalha.
Preparava-se para se afastar da janela quando pressentiu o movimento a um canto do galpão. Olhou e viu algo se debatendo na sombra. Firmou a vista e pode ver duas pernas se agitando nervosas. Correu até a porta e forçou o cadeado estava fechado. Tirou do bolso duas pequenas chaves de precisão e manipulou o cadeado abrindo-o e entrando no edifício. Antes de fechar a porta ouviu o automóvel do açougueiro. Olhou em sua direção e o viu sair pelo portão e desaparecer na curva da estrada.
Contornou a máquina de moer carne e notou encostada á parede a mulher com as mãos amarradas nas costas e uma mordaça fechando sua boca. Correu até ela e retirou a tira de couro que a impedia de gritar.
– Sou da policia!
Exclamou colocando a mão em sua boca.
– Vou tirá-la daqui.
Desamarrou sua mão e a colocou de pé. Seu rosto, braços e cabeça estavam sangrando. Precisou segurá-la firme para não cair. Estava fraca pela perda de sangue e torturas sofridas.
Sentiu o cano duro e frio da arma em sua nuca antes de ouvir a voz que sussurrou em seus ouvidos, sarcástica.
– O que pensa que está fazendo?
Girou a cabeça e pode ver o zelador do canil sorrindo com o revolver na mão.
– Então é você?
– José Maria contraiu o músculo do rosto com aversão.
– O que pensa que está fazendo?
O homem perguntou sarcástico.
– Vou levá-la embora.
O zelador deu um sorriso gutural e bateu com força o cabo do revolver na testa do detetive derrubando os dois no chão. Por uma fração de segundo José Maria ficou prostrado sentindo que sua hora chegara. Abriu os olhos e enxergou entre o sangue que escorria pelo rosto o homem em pé na sua frente. Os braços abaixados não tinha a arma apontada para nenhum dos dois. Como se estivesse sendo dirigido por outra pessoa levantou a perna e chutou com toda sua força entre as pernas do assassino fazendo-o se envergar e dar um urro colocando as mãos no local. Num átimo o detetive levantou-se ainda meio grogue da pancada recebida e esmurrou o rosto do homem de baixo para cima acertando-o no queixo fazendo-o dar dois passos para trás e despencar no chão desacordado.
José Maria foi até ele e o algemou sentando em seguida no caixote de madeira próximo a maquina de moer, sem energia. A moça aproximou-se e abraçou-o chorando. Ficaram alguns minutos sem dizer nada apenas descansando. Em seguida pegou o celular do bolso e ligou para o delegado.
A sirene anunciou a chegada dos policiais incitando os dois a se levantarem e caminharem trôpegos em direção ao portão onde foram resgatados e levados para o hospital.
O interrogatório foi longo e cansativo, mas no final tudo ficou esclarecido. O assassino acostumara a matar suas vítimas e moer seus corpos nos moedores dos açougues onde conseguia trabalho – era um profissional gabaritado.
Havia vendido os despojos como carne moída de segunda ou jogado no rio entre diversas maneiras que usara para fazer desaparecer os vestígios de seu crime. O canil – dissera ele – fora o melhor jeito que encontrara e o mais difícil de ser localizado. Sua intenção era torna-lo seu domicilio permanente e capturar suas vitimas longe dalí. Mesmo que precisasse viajar a noite toda para isso.
O cabelo encontrado era de sua última vítima. O delegado mandou para análise por desencargo de consciência, mas já havia mandado chamar o namorado da moça.
Elisa fora um golpe de azar. Vira-a saindo do açougue de seu Jorge por acaso. Seguira-a e tentara levá-la para o canil, mas quando estava para tirá-la da casa viu o marido chegando. Decidiu mata-la porque não resistiu ao seu pescoço alvo e sensual.
O detetive sentou-se na cadeira e pegou o boletim de ocorrência que estava em cima de sua mesa. Olhou a hora e percebeu que se referia a moça que salvara de ser moída. O arrepio percorreu seu corpo e se lembrou da mesma sensação que tivera horas antes quando tudo ficara claro para ele.
– Parabéns José pelo primeiro caso.
Ouviu a voz e olhou para trás se deparando com seus colegas de trabalho. Levantou-se e exclamou excitado:
– Maria! É José Maria! E não José!
Recebendo os apertos de mão.
Antes de ir para casa voltou ao açougue e encontrou seu Jorge atrás do balcão atendendo um freguês. Esperou o homem ir embora e quando o viu livre perguntou:
– Porque o senhor correu?
O açougueiro envergonhado respondeu:
– Estou com três meses de pensão alimentícia atrasada…
FIM
Faça um comentário