Poema: “Sou um d’os que vagueiam no mundo”

foto by Hannah-Francisco Gomes Lis

 

Poema SOU UM D’OS QUE VAGUEIAM NO MUNDO, de Francisco Gomes

 

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: observo a opaca estrela
entristecida nos olhos da noite…
Observo a lânguida lua dolorida
nas nuas costelas das nuvens…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

As últimas pegadas
apagaram-se sob a matilha
de querubins endiabrados.

As últimas pegadas
apagaram-se sob os pés
de virgens enlouquecidomadas.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: madrugada cúbica
in lieblicher bläue…

O mundo vermelho cultivado no espelho
guarda sóis indecisos
&
sexos de granito
(esse é um dos mundos que vagueio).

Sobre rosas amarelas
, nojos descabidos
, espumas de súplicas
caminho
, todo cinza
, solstício
, solidão.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: estátua de tédio
, mistério-ultra em frutas frias
, natureza-morta no banquete dos deuses.

Observo a calcinação da noite
: astros-epitalâmios
; harpias depilando as partes íntimas
; bêbados apregoando cismas
; travestis com seus cus a granel…

Vagando
, a volúvel infância capricorniana
invade os sonhos da insônia
(a noite é um banheiro público).

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

As portas fechadas
ladram para os noctívagos.

O beijo em chamas
serpenteia o mamilo.

Os postes estéreis
abrigam urina.

As ruas vazias
absurdam existências.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: uma navalha latina degolando semideuses
ou
hipermetropiados suicidas
no carcomido jardim das aflições
atirando-se em roseiras-kamikazes.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: gato amarelo atento ao dia
(clara noite em descoberta)
; vento quente solfejando Serge Gainsbourg.

As pernas trêmulas tensas…
Tarântulas
, túmulos
, turbilhões de signos
são produzidos pelo parfum de la nuit
(noitescarlate cingida de adagas).

Fugir?!
Tendes-me aqui.

Um urro a fórceps
rasgáspero o imprevisível da lágrima.

Desesperado
, intranquilo
, acordo aos risos
: a brutalidade ocre
agridoce no peito desperto
: mais um sonho inútil
: albinas virgens de prata em estado de musgo
apertando meus colhões improdutivos.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: de mãos dadas com Gide
atravessamos a avenida dos sonhos
rumo ao Sun City Hotel
: Rimbaud nos aguarda
com doses de ópio efervescente
“os manterei alucinadamente ligados”.
A sonolência persiste
; o cansaço é isca (fácil?).

Para os que acreditam
que a noite é causadora de lesões
, digo
: a noite é um cavalo indomável
, exige ser montado.

Para os que acreditam
que a noite é causadora de lesões
, digo
: cada esquina é um atalho.

Para os que acreditam
que a noite é causadora de lesões
, é porque nunca olharam
bem no fundo
do olho de um cavalo.

A noite
, somente a noite (…)
é para quem
se desliga do conforto.

A noite
, somente a noite (…)
é para
Os que vagueiam no mundo.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: mariposa hibernando
na parede descascada da sala
; saliva reimosa convertida em ELÉTRONS
; teimosa acidez altiva na uretra.

O corpo cheio de gavetas
(a face lisa sem semblante)
— minifúndio sitiado
, na indecisão a vagar
, rompe cicatrizes cristalizadas
convertidas em inúteis sons.
Sons de luz
: extravio de si
na rua obscena dos desavisados.

Tenho vulcões nos poros
&
abalos sísmicos nas veias
: sentinelas antissono.

Nas andanças oníricas
corro o risco do esquecimento.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

A identidade se perde
num mergulho esparso
no espaço inóspito do orgulho.
Pouco importa.
O tempo é breve.
O tempo é movediço.
Apenas sigo.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo
como em Shelley
: certezas provisórias
são reentrâncias dos dias…

(colidir sempre com a esperança
: a calmaria traz desassossego).

A vida-estratagema
— extensão do finito pantempo —
impõe aos cegos
códigos distorcidos.
Pré-firo (abrir) os olhos
na excêntrica claridade
&
fitar a enferrujada velhice
de tantos séculos
que nos arrasa.

Sou um
d’os que vagueiam no mundo…

 

SOBRE O AUTOR

Francisco Gomes [Campo Maior (PI), 1982]. Vive em Teresina (PI). É poeta, músico e compositor. Foi fundador e integrante da extinta banda de rock Audioteipe. Atualmente, como baixista, é membro do Power trio de Black metal “Anthropophagus Maniac”. Francisco anunciou que está trabalhando em seu primeiro álbum solo de músicas, que tem previsão para ser lançado até o final deste ano. Além de obras inéditas e em construção, publicou 4 livros, entre eles: Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC, 2011) — 1º lugar na categoria Poesia do Concurso Literário Novos Autores/2008, através da Prefeitura de Teresina — e O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado (Multifoco, 2018). Edita o blog “Pulso Poesia” e a página no Facebook “Mal Ditos Paralogismos”. Tem poemas publicados em revistas, antologias, sites etc. Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, leitura, contemplação e escrita.

Confira poemas de Francisco Gomes no Soundcloud

 

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*