Essas coincidências…
Na primeira vez que estive em Buenos Aires, aconteceram-me alguns fatos incomuns. Numa manhã ensolarada de março, eu me encontrava no centro daquela cidade tentando satisfazer uma simples curiosidade. Procurava o número 348 da rua Corrientes. E o que de tão especial havia naquele local? Nada de extraordinário. Queria apenas confirmar a existência daquele endereço. Na minha infância ouvia as rádios brasileiras tocarem um tango muito popular, na voz de Carlos Gardel, no qual um dos versos falava em “Corrientes, três, cuatro, ocho”.
Acerquei-me de uma banca de jornais e num “portunhol” infame perguntei onde se localizava a “calle Corrientes”. Folheando um jornal, ao meu lado, havia um senhor de meia idade, elegante, trajando um blazer azul marinho com botões dourados. Surpreendi-me quando ele, muito sorridente, falou-me, também em portunhol: “Então o senhor quer saber onde fica a rua Corrientes? É a primeira travessa à esquerda”. Perguntei-lhe se era brasileiro e ele me disse ser argentino, tendo já vivido alguns anos no Rio de Janeiro.
Fomos a uma cafeteria e ficamos ali conversando por um bom tempo. Ele me relatou como foi parar no Rio de Janeiro. O motivo foi exclusivamente político. Em 1955, Juan Domingos Perón, então presidente da Argentina, foi deposto por um grupo de militares, e teve de refugiar-se na Espanha. Meu interlocutor era um peronista militante e também foi obrigado a sair às pressas. Pegou carona num avião fretado por militares argentinos e partiu para o Rio de Janeiro. Retornou à sua pátria depois da situação política normalizada.
Conversa fluindo num portunhol fluente, lembrei-me, então, de Francisco Manrique, um argentino que conheci em São Paulo, lá pelos anos 60, quando trabalhava no Grupo Pão de Açúcar. Ele era vendedor de um grande frigorífico fornecedor de carnes para aquela rede de supermercados. Costumava passar lá no escritório a cada quinzena para receber seu pedido de compra. Ótimo papo, sujeito simpático, comunicativo; pele muito clara, cabelos bem pretos e lisos e bochechas bem coradas. Perfil tipicamente portenho. Conversávamos muito sobre política, economia e futebol (claro!!!). Num desses encontros revelou-me como teve de sair ligeiro da Argentina em 1955, pois era oficial da Força Aérea e fiel ao presidente deposto. Embarcou no primeiro avião disponível rumo ao Rio de Janeiro. Apaixonou-se pelo Brasil e por uma brasileira. Casou-se e ficou por aqui mesmo.
Voltando à conversa na cafeteria, meu interlocutor ouviu-me atentamente, e sorrindo revelou-me: “Sei de quem o senhor está falando. O nome dele era Francisco Manrique. Viajámos juntos no mesmo avião, ele na poltrona vizinha. E naquela época, por sinal, ele já chamava a atenção por suas bochechas bem coradas.”
Por fim, encerramos aquela gostosa conversa e nos despedimos.
Incrível coincidência. Da fuga para o Brasil até nosso diálogo na cafeteria lá se foram mais de quarenta anos. E estávamos ali, dois desconhecidos, falando a respeito da mesma pessoa. Tudo começou com a lembrança de Gardel cantando:
“Corrientes, três, cuatro, ocho,
segundo piso ascensor,
no hay porteros, ni vecinos,
adentro cocktail y amor”
P.S. : Não encontrei o número 348 na rua Corrientes.
Por Gilberto Silos
La letra de la canción A media luz: El tango a media luz
Corrientes tres cuatro ocho,
segundo piso, ascensor.
No hay porteros ni vecinos.
Adentro, cocktail y amor.
Pisito que puso Maple:
piano, estera y velador,
un telefón que contesta,
una vitrola que llora
viejos tangos de mi flor
y un gato de porcelana
pa’ que no maulle al amor.
Y todo a media luz,
que es un brujo el amor,
a media luz los besos,
a media luz los dos.
Y todo a media luz
crepúsculo interior.
¡Qué suave terciopelo
la media luz de amor!
Juncal doce veinticuatro
Telefoneá sin temor.
De tarde, té con masitas;
de noche, tango y cantar.
Los domingos, tés danzantes;
los lunes, desolación,
Hay de todo en la casita:
almohadones y divanes;
come en botica, cocó;
alfombras que no hacen ruido
y mesa puesta al amor.
Y todo a media luz…
Gilberto, tomei a liberdade de colocar a música. Caso não queira é só retirar.
Fui lendo, na expectativa de que iria encontrar a rua e o número.
E falando em coincidências, meu professor de espanhol me perguntou se eu conhecia uma música específica de Carlos Gardel, mas infelizmente não.
Abraço!
Oi Beth. Eu é que tenho a agradecer a colocação da música. Valorizou a crônica. Ficou muito bom.
Abraço
Simpática anécdota en mi país, Gilberto!!. Me encantó.