Carrie – Stephen King

Carrie – Stephen King

Por  Gustavo Souza Silva

 

“Mamãe fechou a porta ao entrar

– Você é uma mulher – disse ela baixinho, pois soube da primeira menstruação da filha.

Carrie sentiu seu rosto se contrair e se franzir e não pôde fazer nada.

– Por que não me contou? – gritou. – Ah, mamãe, tive tanto medo! As meninas ficaram me gozando e me atirando coisas e…

Mamãe tinha se aproximado dela, e de repente sua mão ágil desceu rapidamente. As costas dessa mão acertaram o queixo de Carrie, que caiu dura no chão.

– E Deus fez Eva da costela de Adão – ela deu um chute de lado de lado em Carrie, e a menina gritou. – Levante-se, mulher. Vamos entrar e orar. Vamos orar a Jesus por nossas almas fracas de mulher, perversas e pecadoras.

– Mamãe…”

Após ler o título deste texto, aposto que você deve ter pensado nas inúmeras vezes que viu esta história ser contada através das várias versões cinematográficas já feitas desde o lançamento do livro em 1974 – obra que foi o primeiro romance do Stephen King, na época, um contista para revistas e jornais. Claro, você também deve ter se lembrado de cara da tragédia que ocorre no baile de formatura, o ápice da crueldade e um ato de vingança. Então, como Carrie é uma história que muitos conhecem, tentarei fazer uma resenha com um olhar muito mais humano à historia da pobre Carrie e das personagens que a atormentam.

Àqueles não tão familiarizados com esta história, eis um resumo da trama e isento de spoilers profundos – afinal, quem não conhece a cena do balde de sangue? Mas enfim, este romance conta a história de Carrie White, uma garota estranha de uma família extremamente religiosa, que após ajoelhar-se para orar no meio da escola, começou a sofrer bullyngs rotineiros durante os anos seguintes, enquanto na casa dela a mãe dela a oprimia com sua devoção extrema e a castigava por acontecimentos comuns – como uma primeira menstruação, pois acredita que várias coisas são tentações do diabo. Fazendo assim da vida de Carrie algo sofrido, tanto em sua casa quanto na escola. Mas o que ninguém sabe – além da mãe, é que ela tem poder de telecinese, que é ativado em seu consciente após atingir a puberdade – e que explode após a crueldade da zombaria do balde.

Algo bastante interessante sobre esta história, ao meu ver, está nas entrelinhas, nas duas mulheres que inspiraram o Stephen King a escrever este romance. Isto quem leu o livro sabe, mas sinto que devo detalhar aqui. A Carrie White escrita pelo King é reflexo de duas garotas que ele conheceu na escola, as duas eram estranhas e sofriam zombarias dos colegas, assim, levando-as a uma depressão profunda, tanto que uma delas se matou e a outra morreu por epilepsia. Mas seja como for, claramente elas foram vítimas da crueldade adolescente em seus respectivos colégios. Parafraseando as palavras do King:

“Nenhuma das duas – feliz ou infelizmente – tinha o dom espontâneo de Carrie White. Nenhuma das duas terminou o ensino médio, nem chegou aos 30. Tina suicidou-se, enforcando-se no porão de casa. Sandy morreu durante um ataque epiléptico no apartamento que alugara na cidade. Esses eram os fantasmas que ficavam tentando se enxerir na minha escrita.”

Então, é esta a realidade alternativa que ele tenta nos contar com a história de Carrie. O que aconteceria se Tina ou Sandy tivessem o poder mental para revidar o que lhe faziam? E assim ele constrói esta personagem tão humana, tão sofrida. E enquanto ele brinca com a fantasia da telecinese da garota, a zombaria ele faz de forma realista – o que a torna ainda mais cruel. Nas carteiras da escola há frases como “Carrie White come cocô”, ela não tem amigos na escola, os colegas a atormentam a todo o momento, além dos próprios vizinhos, que olham torto para ela. Mas aí tento enxergar pelos olhos dela, que vive aquilo todos os dias, e fico pensando se tal poder fora uma dádiva ou uma maldição. Afinal, ela pôde revidar, mas em sua loucura acabou destruindo não só a escola, mas também a si mesma. Mas antes de começar a falar sobre as personagens e da tragédia, eis um poema escrito pela Carrie, que aparece em certa página do livro denotando a vida dura que ela tinha:

“Jesus me olha da parede,

Rosto frio feito pedra,

E eu sou por ele amada

Como ela sempre diz que sou,

Por que me sinto tão só?”

Em toda história escrita há algum antagonista, ou ao menos na maioria das vezes. Este antagonista pode até não ser uma pessoa, mas um fato, uma deficiência, uma barreira ou afins. Mas na história de Carrie o que mais há são antagonistas, a primeira que avistamos é a Chris Hargensen, uma menina mimada que estuda na mesma sala que a Carrie. Ela, além de zombar da Carrie, após se ver prejudicada por esta, ela não vê o próprio erro e faz planos para castigar a pobre menina, apenas pelo motivo mesquinho de ter perdido o baile de formatura.  Além do Billy Nolan, um marginal do colégio e namorado da Chris, que a ajuda em seu plano vil – e se torna o mentor de tal plano. Mas além dos dois jovens, há aquela que tem maior atenção, a Margaret White, chamada com freqüência por Mamãe. Como falei acima, é uma mulher extremamente religiosa, daquelas que condena todos os pecadores e vive em uma eterna penitência – apenas pelo “pecado” de ser mulher. O pior é ela impor isto à filha também, que cresceu sem saber o que é menstruação e achando que os seios são imundos. E foi esta criação que fez dela uma menina estranha e desajeitada, obviamente. Aliás, aqui vale denotar os adornos na casa de Margaret, para entender melhor esta personagem: Na sala há uma cruz de cerca de 1 metro de altura e quadros de Jesus queimando pecadores. No quarto de orações há uma figura horripilante de Jesus, que parece encarar quem ali entra. Ah, e claro, não há espelhos de corpo na casa – afinal, vaidade é pecado!

E assim, com a opressão religiosa da Mamãe e a crueldade da Chris e seu namorado, uma bomba relógio explode e os estilhaços destroem muito mais do que é mostrado nos filmes. E o interessante é que tanto o livro quanto o filme não fazem questão de deixar no suspense o que irá ocorrer no baile de formatura. A narrativa do King mesmo sempre mostra trechos de livros fictícios feitos após a tragédia na escola – e na cidade, mostrando os estudos feitos sobre a telecinese e sobre a vida de Carrie e da mãe dela antes do baile. E falando nisso, no filme da década de 70, durante todo o baile as cenas intercalam entre a felicidade de Carrie e o balde acima do trono da rainha, trazendo um aperto no coração a quem vê aquilo, pois sabe que o pior ainda virá. E quando o sangue cai sobre ela, o clímax do livro/filme explode na nossa cara e traz um rastro de destruição – uma bela jogada do autor, eu diria.

Embora seja uma obra datada, com um autor um tanto amador e com narrativa menos descritiva – o maior trunfo dele, esta ainda é uma bela obra para uma coleção do Stephen King, afinal, é uma história triste, chocante, aterrorizante e principalmente, humana. Os monstros de Carrie não são palhaços sobrenaturais, vampiros, cães raivosos ou uma criança que voltou dos mortos, mas sim seres humanos comuns e cheios de defeitos. E a Carrie, a única que possui algo sobrenatural, é apenas uma vítima da própria vida que consegue se vingar, um reflexo das ações opressoras de sua mãe e do bullyng sofrido na escola – algo que é cruelmente realista. E ler tal obra dá certa ansiedade, afinal, nós nos apegamos à Carrie e sentimos pena dela. Exemplificando este sentimento, em certa cena durante o baile de formatura – os únicos trechos felizes do livro, antes da votação de rei e rainha do baile, ela tem o pressentimento de que algo ruim irá acontecer… e lendo isso dá uma vontade de gritar “Saia daí, Carrie! Saia!”, mas ela não sai, nunca sai, pois todos sabemos que tal tragédia é inevitável, cruel e triste.

“– Vim matar a senhora, mamãe. E a senhora estava aqui esperando pra me matar. Mamãe, eu… isso não está certo, mamãe. Não está…

– Vamos rezar – mamãe disse baixinho. Fitava Carrie com uma expressão enlouquecida e terrível de compaixão. – Pela última vez, vamos rezar.

– Ai, mamãe, me ajude! – gritou Carrie.

Caiu de joelhos, cabeça baixa, mãos erguidas em posição de súplica.”

 

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