Era um sábado à noite, eu ouvia uma aprazível playlist de Mark Whitfield. Do nada, soa o interfone.
– O morador do 76 está reclamando que o senhor não estacionou o carro direito, não consegue entrar na vaga – disse a porteira com voz trêmula.
O vizinho, ao fundo, falava algo incompreensível. Mas pude apreender que o meu veículo o impedia de sair do seu. Confesso: não sou o mais atento dos condutores, poderia ser mesmo que o meu automóvel estivesse torto. No entanto, reza a lei condominial que devemos ser empáticos.
Ao chegar na garagem, o homem, mesmo deixando claro seu aborrecimento, me deu boa noite. Devolvi-lhe a gentileza e fui verificar onde errara.
Medi a distância do meu Nissan para seu Onix várias vezes. E, com sinceridade, não entendi o porquê da queixa. Ainda mais num sábado à noite, período da semana em que muitos se entregam aos pequenos prazeres que ainda lhes restaram.
O vizinho fez um sinal com a mão que logo compreendi. Significava que eu deveria me posicionar mais à esquerda do espaço entre as faixas. Fui manobrando, e ele sinalizando, como se meu longevo Tiida fosse um Airbus adentrando num finger de aeroporto.
Após o taxiamento, o homem foi se embora e eu ainda permaneci mais um pouco no interior da viatura. Ao virar o pescoço para sair, percebi um retângulo de material fofinho, na cor preta, grudado nas portas do Onix. Lia-se: Auto Protetor. Seu carro bem protegido.
Nunca tinha batido os olhos, nem a porta do carro, num produto assim. Todavia, ao seguir caminhando pela garagem, percebi que muitos bólidos – de todas as marcas, cores e dimensões – usavam o tal Auto Protetor.
Feito Ed Motta, já dirigi automóveis e consumi capital. Só que agora, com a gasosa a oito reais, muito de vez em quando. Também sou chofer, só não assimilo a razão pela qual seja tão fundamental a autoproteção aos autos, e tão pouca aos nossos autóctones, por exemplo.
Tanta grita em torno dos centímetros em que se deve parquear num estacionamento de condomínio. E tanto silêncio em torno da destruição de parques nacionais. JK, aquele FHC que construiu o Distrito Federal, tem culpa no cartório. Planeou um país dependente de ruas, avenidas, marginais, minhocões, em que só se pode circular de automóvel. Uma Los Angeles dos pobrezinhos nos trópicos.
O resultado é o autofetichismo. Uma moléstia brasileiro-estadunidense que inclui elementos doentios, como o lava-rápido gourmetizado (e, por aqui, a Lava Jato), a cristalização automotiva e… o Auto Protetor Veicular.
Além, desafortunadamente, da interrupção das playlists de Mark Whitfield nos sábados à noite.
O micro sempre explica o macro.
(Publicado originalmente no Brasil 247)
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