A FOLHA
Ouviu-se o seu nome no auditório: abotoou o casaco com elegância e deu um beijo tangente à mulher, que o admirava febrilmente. Era um ativista conceituado e, naquele ano, o seu projeto em prol da igualdade de género tinha atraído a simpatia dos financiadores. Alexandre era um quarentão elástico, sedutor, cabelo cortado a pente um, com discurso contundente.
O fato de bom corte e o cachecol às riscas sobre uma camisa cintada denunciavam abastança, adquirida já na fase adulta. Ao subir ao estrado o sapato envernizado chiou no piso de madeira, enquanto Lourença, a mulher, sorvia cada gesto seu.
Tomou o microfone ainda mergulhado numa copiosa chuva de aplausos. Quando falou, descontraído, começou por agradecer o apoio da família “sem o qual não teria podido conduzir a missão que se propôs”. Dirigiu palavras emocionadas à esplêndida crioula encaracolada, com um traseiro asfixiado num vestido inadaptado à anatomia africana. Qualquer um teria ficado por aí, os minutos da praxe estavam já consumidos pela evidente bazofaria. O moderador fez-lhe sinal para abreviar. Mas Alexandre ignorou-o, displicente, e ironizou:
– O Joaquim que me perdoe, mas tenho uma pequena cábula que vou passar a ler, para não esquecer ninguém; seria imperdoável ignorar um só nome dos que se empenharam neste projeto…
Ato contínuo, sacou da folha dobrada e teve um reflexo de estranheza. Pareceu-lhe minúsculo o papel que demorou a desembrulhar. Pôs os óculos e leu silenciosamente: “estou à tua espera cá fora. Desenrasca-te. Senão hoje os teus apoiantes vão saber qual é a tua ideia de igualdade de género. Há quatro menores dispostas a depor contra ti”.
Quando Alexandre perdeu os sentidos, ouviu-se um burburinho: “Coitado, o homem está esgotado: não admira, ele vive para a comunidade”. A crioula, de olhos embaciados de desespero, já voava desvairada para a tribuna.
Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).
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