Não sei com vocês. Mas, comigo, acontece um fenômeno curioso. Certas personalidades, mesmo eu não tendo sequer passado perto delas, são como íntimas para mim. Tipo um primo, uma cunhada, um vizinho de porta.
O Gilberto Gil é um deles. Conheço desde criancinha, sem conhecê-lo. Sei o que ele gosta de comer, os momentos preferidos para compor suas canções, o que o incomoda – e são tão poucas coisas. Um fofo, o Gil. E como gosta de socializar, nunca se cansa de dar atenção a quem o procura. O oposto de Roberto Carlos. Ah, esse, que também nunca vi nem em sonho, mas estou por dentro dos modos, é um arredio. Naquela casa enorme curte um pouco a solidão, só sai para acelerar seus carrões na estrada de Santos. Porém, até tal hábito tem rareado desde que ficou sem gasolina no meio da rua. É óbvio que ele nem supõe quem sou, contudo, como todo bom amigo, o teria ajudado a buscar combustível no posto mais próximo.
Outro que tenho como um tio é o Millôr. Naturalmente, nunca frequentei seu apartamento, em tempo algum entrei em seu estúdio, nem joguei frescobol em sua companhia. Mesmo assim, posso dizer que há entre nós uma química qualquer. Muitos dizem que o fato se dá por eu ter lido inúmeros textos de sua lavra. Não concordo. Meu relacionamento com o guru do Méier vai além do literário, mesmo ele nunca tendo ouvido falar do meu nome.
Mário Quintana, com quem não me encontrei, ou troquei cartas, concordaria comigo. Assim como, Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Lygia Fagundes Telles. Jamais nos sentamos numa mesa de bar, em volta de drinques, mas sinto como se tivéssemos tomado vários pilequinhos juntos. Manoel, claro, com seu uísque; Lígia e Rosa no vinho branco.
O mais interessante é que também tenho inimizades com quem desconheço, mas conheço. Brigo muito, em especial com Oswald de Andrade. Como escrevo humor, costumo me ofender mais facilmente quando alguém é irônico comigo. O debochado sou eu, não o outro. Os que tiveram proximidade com Oswald, o que não é meu caso, sabem o quanto ele foi sarcástico. Provocava até seus pares, como Mário de Andrade. Eu não era vivo na época do Modernismo, claro. Entretanto, tenho ganas de sacudir o autor do “Manifesto Antropofágico”, ainda que o Waldinho seja conceitualmente um grande camarada meu.
Noite dessas me lembrei do amigo Freud. Se é o que está pensando, leitor, não privei de seu convívio. Em termos temporais, nem seria possível. Mas, o conhecendo, como o conheço, sei que ele me diria, cofiando seu arrogante cavanhaque: “Carlos, seria bom você trabalhar sua onipotência voltando à psicanálise”.
Amigos têm defeitos, como todos. No Sigmund, por exemplo, a mania de querer, por qualquer motivo, jogar todos num divã é algo que irrita por demais. Além daquele seu vício horrível em cocaína. Amigos, é sabido, são para se guardar do lado esquerdo peito. Então, eu te perdoo, Sig.
(Publicado no Estadão)
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