Manda nudes – Filipi Gradim
Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre o olhar artístico da nudez
Pintura: Auguste Renoir
Por Filipi Gradim -17 de agosto de 2020
A História, escrita com H maiúsculo e narrada nos livros, não se desnuda. Mas a nudez tem uma história. Os fatos que se tornaram históricos omitem suas verdadeiras razões, seja por vergonha seja por perversão. Nunca sabemos, com efeito, nas entrelinhas, o que conduziu um acontecimento a ser o que é. Ele está sempre protegido por alguma vestimenta, para que não vejamos as coisas tais como são ao natural. A nudez, não. Além de reveladora, transcorre na vida humana há milênios desembocando hoje na troca de fotos pelos aplicativos de encontro.
A nudez persiste na história com sua originalidade, com seu desvelamento, com sua honestidade, mas a história tende a disfarçar intenções e só se mostrar, na pele, dentro de quatro de paredes. Não creio que, com o tempo, as coisas se desnudam. Ao contrário, convém que se vistam, que se mascarem, com vistas à proteção. Se isso acontece, quando olhamos a nudez dos fatos, pode ser que tenhamos vergonha do que vimos. Porque, por debaixo da moral, dos “bons costumes” e da usança comum, se escondem intenções. A história da civilização “vestiu” seus propósitos dominantes com uma suposta crença na superioridade da raça branca para não parecer violenta e selvagem. Selvagem era o outro, o indígena que se desnudava.
Pintura: Ticiano Vecelio
Nietzsche explanou o quão hipócritas somos ao vestirmos as intenções com “bondade”, “progresso” e “humanismo” quando, na verdade o que se pretende é domesticar e subjugar o corpo do outro. Foi assim com a moral judaico-cristã e ainda é. A nudez é condenada porque representa uma entrega absoluta, uma natureza pura que os moralistas são incapazes de ter. O que resta ao moralista é inventar o conceito de “vergonha”, de “pecado”, de “afronta” para rebaixar aquilo que ele tem incômodo em ser. A nudez, enquanto conceito, é produto do olhar do Outro sobre um corpo, posto à certa distância, que se distingue do meu corpo por ser visto.
Em virtude da capacidade que um corpo tem de ser visto ao natural que a nudez é o que é. Porque se não houvesse o Olhar, a nudez não saberia de si, não captaria sua objetividade, sua realidade transcendida, fora de si. Lembremos Adão e Eva. Não foi Deus quem os viu? Se não houvesse um olhar externo com tal monumentalidade, eles não saberiam que estavam nus. Dessa forma abordaremos aqui a nudez como produto de um olhar e não a nudez em si mesma, uma vez que ela só faz sentido se houver um “fora”, uma distância relativa para ser vista.
Extraio de Sartre o fio condutor do artigo. O Olhar é a relação entre o Eu e o Outro, quando este Outro se acha em condições de, livremente, perceber uma sombra projetada. Esta sombra não é imaginação, nem delírio, mas “trata-se do meu ser tal como é escrito na e pela liberdade do Outro”. Quando o Outro me olha, eu sou a possibilidade que ele escreve sobre mim. Sob o olhar dele, eu sou o que a liberdade dele determina. O olhar do outro me decompõe. Não sou o que penso que sou. Passo a ser o que a liberdade do olhar alheio é capaz de traçar. Na Arte, todavia, o olhar do pintor decompõe e recompõe o que foi visto. Em virtude da liberdade que tem de olhar e considerar o Outro, o artista duplica seu olhar: desfaz e refaz.
O pintor, ao representar um corpo nu, olha o corpo se esvaindo na direção de seu olhar. Ele se encontra diante de um modelo, ao vivo, um Outro que se distancia. Quanto mais se distancia, mais ele é livre para olhar e considerar infinitas possibilidades sobre tal corpo. E se tal corpo está nu, então ele está entregue, desprotegido, aberto ao campo infinito de visão, da mesma forma que Adão e Eva no Éden, observados por um Olhar inumano que julga/condena. O pintor espreita o modelo nu, sem se esconder dele. É do ofício do pintor se assumir um voyeur. O Outro está nu diante dele e não para ele, o que significa que esse corpo se permite ao Olhar. E o pintor não pode exercitar sua liberdade, por meio do Olhar, se não houver essa concessão.
Na história da pintura, o nu protagonizou esse duplo encontro de liberdades exercido entre o “eu” que desnuda e o “outro” que me olha. Desde os gregos foi sempre esse acordo de cavalheiros: o “eu” modelo permitindo ser visto e o “outro” artista oferecendo diversificadas formas de ver. Mas esse comércio de liberdades é cogitável apenas em uma democracia e sob o reino da amoralidade, se perpetuando por séculos e lutando contra os falsos puritanismos. Ele só se realizou porque alguém se dispôs a ser visto tal como é, ao se mostrar no original. Assim se potencializa a liberdade, de tal forma que o modelo se liberta de si e dos artifícios de defesa impostos pela moralidade. Em todo nu artístico existe velado um “por que não?”
Destaco alguns artistas que me aprazem na forma de ver a nudez. O primeiro é Ticiano (1488-1576), o renascentista que superou o pudor representativo do corpo. Mais desinibido que Botticelli e Rafael, introduziu a nudez feminina na obra “Bacanal” (1523-26). Logo no primeiro plano se vê uma ninfa estirada na relva, misturada ao cortejo dionisíaco, que reúne deuses, humanos e criaturas míticas em torno da celebração do vinho e da fecundidade da terra. A nudez, nesse contexto, se harmoniza ao contexto geral da composição, de modo que possui um sentido objetivo radical pertencente ao que a alegoria se propõe representar.
Nudez aqui é representação, quer dizer, um olhar abstrato e genérico sobre a imagem. Mas já determina algo de pensante, que é o fato de significar a pureza, não pela brancura leitosa da pele da ninfa, mas pelo desprendimento da ninfa ao se despir ao olhar do outro. Quem se desnuda não tem o que temer nem justificar – pureza! Mas não vimos, na composição de Ticiano, a mulher pura e sim o conceito de pureza decalcado na nudez da mulher. Vimos o modelo no qual o artista se inspirou, em vez de vermos a realidade. Ticiano se priva do olhar singular e se serve da alegoria porque é uma forma de falar pelo que se resvala da imagem.
Goya (1746-1828)dá um salto em relação à tradição neoclássica, em cuja fonte se banhou. Mais afinado ao romantismo, o artista espanhol pintou a “Maja Desnuda” (1795-1800). Nela, alcançou um grau inédito na pintura. Ele infundiu uma intenção no nu artístico que, por ser escolha do artista, um direcionamento, transpôs a mera representação do modelo para o nível da vivência. A mulher nua deitada em um portentoso divã, encostada em travesseiros sedosos está inteiramente entregue ao olhar do pintor, algo que não se via na tradição.
Goya é dotado de uma liberdade comum ao artista romântico que se direciona a um modo singular de fazer uso da pintura. Pintar não é mais representar, desenhando e preenchendo de cor “coisas” genéricas. A arte de Goya nos prova que existe algo concreto, que é o Outro diante do pintor. O pintor não é um olhar generalizante, mas Outro que, no uso da liberdade, trata a pintura como encarnação de seu olhar. O quadro não é “a mulher nua”, mas a visão do artista diante de uma mulher que sua liberdade decompôs e recompôs como “obra”.
A maja está entregue ao olhar de quem obra. Ela se permite, permitindo ao pintor que ele nos permita ver não o quadro, masa originalidade da mulher sob certo ângulo de visão. Goya é generoso conosco ao compartilhar não o sentido do seu Olhar, mas a mesma liberdade e possibilidade que ele teve diante do Outro. Desse modo, pintor coincide com o espectador vendo, não um símbolo, mas uma realidade, uma carne pintada, uma face corada, um pelo pubiano pífio e um seio de pêssego. Não vimos “a” mulher encerrada no esquema visual da alegoria, mas a sensual Pepita Tudó, amante do diplomata espanhol Manuel Godoy.
O mesmo sentido de liberdade, em que Olhar é mais importante que Representar se vê no austríaco Schiele (1890-1918). O pintor modernista é um filósofo que pensa à base de massas de cor e esquemas lineares inusitados e provocantes. Os nus de Schiele realçam a condição dada ao artista de olhar e de fazer desse olhar um modo de intervenção, de deslocamento, de realinhamento do corpo, da mesma forma como sonhava o febril espírito de Artaud. Realinhar o corpo é desnudá-lo, desmontá-lo, reorganizá-los nas suas medidas e paradigmas, confessando a insuficiência da anatomia pelo modo enfraquecido que a moral civilizadora o enquadrou.
Impregnado da violência emotiva do Expressionismo, Schiele carrega o corpo de seus modelos com uma vulnerabilidade atroz. No quadro “O Abraço” (1916) vê-se claramente que não existe generalização, conceituação. Um casal “x” está deitado em uma superfície forrada por um lençol drapeado. Estão nus, in concreto. A mulher exibe o sexo ao se abraçar ao homem que está de costas, deixando apenas o dorso à mostra. Essa nudez é “feia” dentro da escala estética grega e “indecente” em vista do olhar moralizante. Schiele não é o olho que julga, mas que encarna o Outro. O artista, como diz Camus, absolve tudo, aceita todo corpo como possível.
Com Schiele a nudez não parece estar à distância, mas de perto a carnação da pele leva ao interior daquele ser. Não somos o voyeur porque o pintor também não o é. Não há convite à contemplação daquela intimidade. Estamos invadindo a cena, pela liberdade que o artista tem de nos incitar à vivência. O casal não sabe que está sendo visto por nós, não se constrange com o olhar e se aliena de seu ser que está nu apenas para nós e não para si. O casal não captura nosso olhar e, por isso, está como no paraíso perdido, original, puro e desvelado de máscara.
Belissima reflexão!