A poética do absurdo na obra “Branca de Neve” de Pablo Berger
Por: Diego El Khouri
“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho.”
Orson Welles
“Os filmes são coleções de fotos inanimadas que foram submetidas à inseminação artificial.”
Jim Morrison
A fantasia, o sonho, o mergulho no universo primal-humano, a palavra dita pelo olhar e pela mobilidade do corpo, iluminação dramática, por hora idílica, luz e sombra, a câmera guiada e levada a nos conduzir nesse labiríntico universo que é, em essência, o “DNA dos irmãos Grim”, mestres das fábulas infantis, “argonautas do tempo”: nuances de olhar infantil / adulto emergindo em força e delicadeza em uma película que resgata uma história já conhecida do imaginário popular, porém dando gradações novas de uma contemporaneidade complexa e simples. Lançado em 2012, o longa-metragem Branca de Neve, do cineasta espanhol Pablo Berger, consegue ( e não é tarefa nada fácil) ser inovador em uma obra recheada de inúmeras adaptações. O clima é retrô, ao mesmo tempo que toca em pontos relevantes dos dias atuais; moderno com o pé no passado.
O poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989) já dizia em um de seus célebres poemas, numa quase idealização completa do cotidiano e da vida (talvez do olhar sobre a vida) que “vai chegar o dia / que tudo que eu diga / seja poesia”. O filme de Berger (que é todo inspirado no cinema mudo) tem toda essa áurea abstrata e sensitiva da palavra sem voz, do comunicar-se pelo olhar num ambiente todo conectado com uma poética forte em identidade e burlesca em intensidade. A trilha sonora é assinada pelo cantor, compositor e ator Alfonso de Vilallonga. Ele se utiliza, em boa parte da obra, para narrar a história, dois tipos de som: som diegético e não diegético. O que seria som diegético? “É basicamente o som que os personagens que estão na cena podem ouvir”, já som não diegético seria “músicas, locuções, trilhas que os personagens não podem ouvir, e são inseridas para trazer uma profundidade maior para a cena.” Charlie Chaplin (1889-1977), o mestre do cinema mudo, dizia que “o som aniquila a grande beleza do silêncio.” O silêncio das palavras, silêncio onde tudo se torne poesia e êxtase. Silêncio impactante, ensurdecedor. Silêncio que tudo diz e tudo ouve. Silêncio que se expressa na emoção do momento, no jogo de ideias, na construção da “arquiteta composição”. “Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música (Aldous Huxley). A melodia “ritmando a ação”. O longa atravessa a Espanha no início do século XX. Uma Espanha que passava por mudanças comportamentais decisivas em sua história.
“Branca de Neve” teve duas adaptações recentes: os filmes norte-americanos “Espelho, Espelho Meu” (direção do Tarsem Singh) e “Branca de Neve e o Caçador” (um filme de Rupert Sanders) passam longe do texto original dos irmãos Grim. Nem a Disney (que popularizou para os “tempos modernos” essa antológica obra) conseguiu chegar tão perto da película de Berger. O espanhol utiliza muito na filmografia um clássico tipo de plano que é o Contra Plongée, que também é chamado de Câmera Baixa, já que neste enquadramento a “câmera filma o foco principal da cena de baixo para cima, deixando o espectador abaixo do personagem, ou objeto, e engrandecendo ele na cena.” Esse tipo de plano, nesse filme especificamente, gera ideia de amplitude e também uma forma de buscar o olhar infantil, a criança que enxerga o mundo de baixo para cima, numa eterna volta à infância. Carmen, ou Carmencita (interpretada pela atriz Macarena García), a personagem principal, relatada da infância até a fase adulta, nunca deixa de negar, essa áurea da criança que habita em todos nós, mesmo que esse mundo mecanicista e pragmático tenta nos afastar dos primórdios da nossa existência, a essência que nos fazem seres dicotômicos.
No início do áudio visual, ou como alguns preferem chamar, “a imagem em movimento”, o ilusionista francês Georges Méliès, no ano de 1896, demonstrou que o cinema não servia apenas para gravar a realidade, mas também para criar a fantasia. A invenção como suporte de criação artística e cultural. Pablo Berger, também se utiliza desse artifício. Alçar voos como ave de rapina. Transcender o banal numa profusão onírica, as fronteiras imagéticas, “os aquários desordenados da imaginação”. O movimento expressionista alemão, movimento do final do século XIX, deixa sua marca (viva e exposta, mesmo que de forma sutil e com ar idílico) suas raízes abissais nessa obra contemporânea. Movimento este, cujas origens podemos ver de forma bem evidente na pintura do holandês Van Gogh (1853- 1890), e que dentro do cinema foi bastante utilizado, principalmente entre os anos 1920 e 1930 (mesmo que o filme hollywoodiano ainda se utilize de determinadas conquistas dessa torrente específica de criação): tema sombrio, personagens bizarros, distorção da imagem, dramaticidade excessiva, que se configura desde a maquiagem, as cenas e o cenário. Inúmeros assassinatos ocorridos na linha histórica desse filme de 2012 exemplificam, em parte, essa influência do Expressionismo Alemão e sobretudo a obra dos irmãos Grim. O olhar penetrando gradações de camadas de sentimento e cores (o filme é preto e branco e mesmo assim podemos falar em cores, nas múltiplas gradações do preto e cinza/ luz e sombra), olhares fortes e penetrantes se utilizando do close-up para dar profundidade a determinadas cenas, imagem sobreposta em imagem num resgate a tradição do cinema mudo. “Tarefa difícil é fotografar o silêncio”. Abrir as “asas da imaginação”. Desprender-se do convencional e adentrar reinos, antes inóspitos e que, com a coragem do mergulho, se fazem presentes e necessários. Ultrapassar a primeira porta é difícil. Após os primeiros (porém significativos) passos fica mais fácil, mais leve. O humor, aquele humor enviesado, de esguelho, sorriso canto de boca destilando ironia, é tônica forte e abarca todo um clima que perpassa o filme, essa tríade: humor, drama e absurdo. O grotesco também pode ter camadas de sutileza e consegue dialogar tanto com o adulto quanto a criança. O “além do homem” nietzschiano, a superação “acima dos obstáculos” são ensinamentos que não se apresentam de forma clara. O existencialista francês Jean-Paul Satre (1905-1980) já dizia que o receptor interpreta uma obra artística de acordo com suas próprias ferramentas.
O espírito espanhol, a tourada, a jornada circense, a áurea moderna e arcaica criam uma sensação de não linearidade temporal que ao mesmo tempo desmistifica quando percebemos que o filme segue uma cronologia clássica: começo, meio e fim. A história do toureiro Antonio Villalta (Daniel Giménez Cacho), que durante uma apresentação sofreu um acidente que quase lhe custou a vida, perdendo os movimentos dos membros superiores e inferiores de seu corpo abre as portas para a jornada da menina Carmencita. Durante o susto do acidente, a esposa de Villalta se desespera e morre durante o parto sequencial do acidente que levou seu marido à internação. Este nega a criança como rejeição da perda e casa-se algum tempo depois com a enfermeira Encarna (Maribel Verdú), que se tornaria uma madrasta extremamente megera e sádica. Abandonada, a jovem Carmencita, criada nos primórdios de sua infância pela sua avó, interpretada pela atriz Ângela Molina, se vê novamente só, quando esta faleceu. Mas o futuro lhe reservou a surpresa de um reencontro com o patriarca e um duelo com a madrasta. As cenas são dinâmicas, uma tônica moderna que Berger dá ao cinema mudo. A fotografia assinada pelo Kiko de la Rica, recheada de cortes rápidos (nenhuma cena passa mais do que 5 segundos sem corte) dá movimento e gera constantes sensações de surpresa. Após o mergulho não há como voltar atrás. Suspensos nesse mundo “simples e complexo”, sem o fio de Ariadne, sem salva vidas, sem guia ou bússola. A obra se apresenta tal como é: multifacetada, esplendorosa e (por que não?) banal — um riso mórbido, beijo colhido na manhã, uma lágrima que cai leve, leve, leve, e cai pungente e mágica como só a vida pode ser.
Estou mergulhado na literatura infantil. Ana Maria Machado nem sei das bases teóricas desta literatura. Esta sua análise Diego é ótima. Só temos perguntas diante da literatura?HOJE perdemos Gal e Boldrin. É a vida!