O engavetamento

Morávamos em sete no apartamento de 50 metros da Lapa de Baixo: pai, mãe, avó, irmã-bebê, eu, Josezinho e o pai.
Josezinho e o pai eram hóspedes. Tinham vindo do interior do Maranhão para tratamento médico. O pai estava cegando, o filho com problemas no desenvolvimento.

Sobrava pouco espaço para momentos de lazer na área comum. A mim, só restava a gaveta de figurinhas de automóveis no cômodo que dividia com a irmã-bebê e a avó.

A bebê dava trabalho, a mãe estava doente por causa de complicações no parto. Por isso, a avó passava a noite procurando acalmá-la com mamadeiras, chás, cantigas e preces a Nossa Senhora da Conceição.
Ficava complicado manter o sono. O fato colaborava para o meu “calundu”, que era como minha avó chamava mau humor. Na verdade, eu adoraria mesmo era ter um lugar só meu. Onde pudesse colocar em ordem meu álbum de figurinhas, sem o Josezinho me fiscalizando.

E não se tratava de imaginação minha. Sempre que me via mexendo na gaveta, lá vinha ele com uma voz grossíssima para seus oito anos:

– Me dá a do Mustang, me dá a do Mustang.

Ele ainda queria a mais rara: a do Mustang, cor de sangue. A que eu havia trocado por 12 repetidas do Abarth.
Na época, eu não compreendia que, com o salário de caixeiro-viajante do pai, era dar graças a Nossa Senhora da Conceição por ainda podermos residir na zona oeste. Hospedar conterrâneos mais necessitados do que a gente, era a forma de reconhecer, aos céus, nossa sorte. Por isso, toda a paciência do mundo com Josezinho.
Foi o que acessei quando vi que ele rasgara a figurinha do Mustang. Depois, é claro, de ouvir a avó repetir dezenas de vezes:

– Tem nada, não. Releve porque o menino é visita…

Relevei. E tudo teria ficado assim caso, certa noite, ao entrar no quarto, não encontrasse Josezinho revirando minhas estampas de carros no chão.

A horrível visão foi maior do que qualquer misericórdia cristã. A reação foi puxar a gaveta de suas mãos. Queria recolocar meus tesouros lá dentro. Porém, o garoto imprimia força igual à minha. Como esperado, uma hora a gaveta se soltou. Feito um míssil, lhe atingiu a testa. A queda dele lembrou a de Maguila frente a Evander Holyfield.

Ao ouvir o baque, o pai de Josezinho adentrou no ringue. Apesar das pupilas fracas percebeu o filho tombado, o sangue da cor do Mustang no chão. Em pânico, deu um puxão na gaveta. Esta voou em minha direção, me acertou o queixo: segundo nocaute.

Hoje, me veio a recordação de todos na Kombi do seu Adroaldo, vizinho que fazia carretos na Lapa. Por iniciativa da avó, viajamos a Aparecida para pedir à santa que curasse a mãe, os olhos do seu José, para que meu queixo desentortasse e que Josezinho criasse juízo.

Foram solicitações demais. Nossa Senhora só restabeleceu a saúde da mãe, que acabou me dando mais três irmãos-bebês. Seu José cegou de vez, meu queixo ficou fora de prumo, e Josezinho piorou ainda mais o comportamento.

Como hóspede de casa, nos 18 meses seguintes, ele apontava para a figurinha do Mustang, eu a entregava e ele rasgava. Não havia alternativa: ou relevava, ou recebia uma gavetada da avó.

(Publicado no Brasil 247)

Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

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