A CANOA DE ANTÔNIO
Não é a canoa, Antônio. É só seu peso, seu fardo. E ontem sua neta foi embora as vinte e duas e dez. Estou te vendo segurando o caixão. Melancólico, condoído, preso em poça barrenta. Pare de segurá-lo desse jeito! O esquife não é um barco. Dessa vez, você não é o capitão. Tem uma fé enorme naufragando no seu peito. Doendo a dor do mundo inteiro.
Sua canoa de pescador teimoso. Posso te ver daqui, segurando-a, como quem quer controlar o movimento. Conduzir.
Estou aqui em meio a tantas pessoas atônitas, sem saber o que dizer. Falar o quê? Sua neta se foi aos sete anos, sua única neta. Aquela que você criou desde bebê. Que viu nascer. Ela ouvia suas histórias cheias de mentiras engraçadas sobre peixes, iaras, sacis e mães d’água. Morreu de leucemia, ontem, as vinte e duas horas e dez. Num domingo lento que não passava nunca. Que seja esquecido prá sempre. Será que vai ser?
Morreu no mesmo dia em que nasceu. Num domingo de manhã, as 11. Sol estridente. Sua mãe não a quis. Entregou a filha aos avós e fugiu sabe lá prá onde.
Não quis enfrentar a leucemia. Talvez tenha sido isso. Ela profetizou o mal. Só pode ter sido isso. Que mãe abandonaria uma filha?
Uma menina meio índia, foi crescendo ali naquela mata de rio, de várzea, linda como as iaras, como as luas, que as águas poluídas do rio engoliam a noite. Ela previu que teria que enfrentar a doença da menina então fugiu antes que “esta” lhe pusesse louca.
Antônio sabe o quanto isso dói. Todos ali sabem. Passaram por perdas, de um jeito ou de outro. Vivenciaram a dor. Domingos lentos que não acabam nunca. A tragédia comungou com eles. Bebeu a água, beijou a boca, tomou sopa à noite. E às 10 e 10, daquele domingo doido, entalado na noite, no peito, na garganta, sem dizer nada ela se foi. Olhos fundos, abertos ainda. De olheiras, acostumados.
Todos permanecem na igreja velando, ruminando o gosto amargo da morte, sem engoli-la de fato. Suportando a angústia do não entendimento, da não aceitação, da incompreensão. Tem que ser assim? Esse FEL?
Estava lá o Seu Antônio, o avô mais triste do mundo. Fé batida, esmagada. No chão da igreja. Alguém, mijou ali mesmo. Na frente de todos. Uma senhora com incontinência urinária.
“Tem Alzheimer”, um menino disse. Não entendi nada. Era de enlouquecer mesmo.
Ele, Antônio, forte, firme, segurando o esquife, a canoa, a embarcação que o levava para um naufrágio. O corpo leve da menina magra. Enquanto ele, teria que suportar a vida, sem a neta.
Há tantos anos ele contava mentiras. Histórias fantásticas de pescador, mentiras de lambaris, de bagres, cobras d’água, mentiras de fazer tremer e rir, mentiras generosas, mentiras suportáveis.
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