por Gustavo Souza Silva
“Sem dúvida, os judeus são uma raça, mas não são humanos!”
– Adolf Hitler
Quando se fala de histórias em quadrinhos, logo se lembra da Marvel, DC e afins. Sendo um pouco genérico, talvez se possa imaginar até que é algo voltado aos adolescentes, um pensamento que entendo, mesmo. Mas além das clássicas histórias de super heróis, vilões e acontecimentos fantásticos, os quadrinhos também são usados como veículo para narrativas um tanto adultas – Milo Monara¹ que o diga. Estes geralmente são chamados de Graphic Novels, histórias muito mais sérias e muitas vezes escrita numa linguagem que uma criança não entenderia, como por exemplo, Maus, uma história forte onde os personagens são animais, algo que até chega a ser engraçado, mas o contexto é muito, muito real.
Após esta pequena introdução, deixe-me apresentar a você o enredo. Maus é a incrível história real de Vladek, pai de Artie – autor e personagem da obra. Nesta obra, Artie, um escritor resolve escrever uma história em quadrinhos sobre a vida de seu pai – um judeu sobrevivente do holocausto nazista. Então começa a visitá-lo com certa freqüência, mesmo que seu pai seja um tanto irritante, a fim de entrevistá-lo sobre sua vida. E nisto a narrativa vai se intercalando, ora mostra o presente, com o filho entrevistando o pai, ora conta a história da vida de Vladek, desde sua juventude até sua sobrevivência nos campos de Auschwitz – onde ocorrem as cenas mais duras do livro. Ah, mas há um porém nesta história os judeus são representados por ratos, os alemães são gatos, os poloneses são porcos etc.
Confesso mal saber como começar esta resenha, Maus é uma história muito complexa e fiel ao período da segunda guerra, afinal, a base de seu roteiro foi o relato real do pai do Art Spiegelman. É algo que se um adolescente que está começando a estudar a segunda guerra ler, talvez entenda algo, mas é preciso mais. Não por causa de sua linguagem, que é até fácil de se ler, mas por todos os elementos de sua narrativa – que faz desta, uma graphic novel genial. Indo mais a fundo e sendo um pouco poético, eu diria que é preciso certa sensibilidade para lidar com a trajetória de Vladek, que possuiu tantos altos e baixos em sua vida – desde sua juventude, quando encontrara o amor, até sua luta para não se tornar mais uma vítima dos nazistas.
Antes de falar sobre a tal luta de Vladek, sobre como ele sobrevivera por tanto tempo num período em que ser judeu era perigoso demais, é necessário falar sobre seu primeiro amor, a Anja. Afinal, o sentimento que ele nutria por ela foi como uma chama que o manteve firme para sobreviver àquele tempo que os colocava em perigo constante. Não pretendo dizer tudo aqui, estragando sua leitura, mas devo denotar o fato de que eles se conheceram ainda jovens – pouco tempo antes da guerra. E o amor deles foi forte, forte o bastante para fazer com que fugissem juntos, com que sobrevivessem juntos… e este sentimento manteve-se forte até nos campos de concentração, onde escondidos eles escreviam um para o outro – mesmo com o risco de serem pegos.
Bom, voltando à jornada pré-campo de concentração de Vladek – já denotado o sentimento que o impulsionou, é importante notar as pequenas etapas dos nazistas em sua dominação racial em cima dos judeus. Antes de virem os campos de concentração e os fornos, eles apenas limitavam os judeus, tomavam seus lares, fábricas, pertences, até deixá-los acuados como ratos – fazendo jus à metáfora usada pelo autor. E o fato do Vladek ser rico antes da guerra apenas denota que pra eles não havia diferença entre os judeus, pobres ou ricos, para Hitler eles eram apenas animais. E ver a família de Vladek perder seus pertences um a um, apenas demonstra como os direitos judeus foram sendo tirados pouco a pouco, até que fossem rebaixados a lixo nos campos de concentração. E em meio a isto tudo nós vemos como o Vladek usou sua inteligência e habilidades para dar alimento e abrigo para ele e sua mulher – após todos serem expulsos de seus lares. E enquanto sobreviviam, vários judeus ao redor continuavam sendo mortos, incluindo amigos e familiares.
E assim se passa metade da história de Maus, com o Vladek contando sobre como sobrevivera e fugira por tanto tempo antes de ser levado aos campos de concentração junto com Anja. E esta fuga/luta já é algo duro de se ver, como disse cima, ele vê amigos e familiares morrerem, se vê sendo obrigado a se esconder dos soldados alemães para não ser pego como prisioneiro ou até mesmo morto pelo simples fato de ser um judeu. Isto enquanto nós vamos conhecendo cada vez mais o que aquele Vladek jovem se tornou no futuro – quase como uma caricatura da figura judia. E que fuga é essa, devo ressaltar, que fuga… esta primeira parte é a mais cheia de detalhes da história, pois o Vladek usa de muitas estratégias e encontra muitas pessoas durante sua jornada, talvez por isso do título da parte I, Meu Pai Sangra História. Já a segunda parte é mais simples, porém, muito pior.
Se na primeira parte desta história, nós vemos como Vladek e Anja evitaram por tanto tempo os alemães e as prisões, enfrentando a fome e o medo a todo o momento, algo que já era duro, a segunda parte apenas agrava a situação dos judeus – e do casal protagonista. Pois após vermos eles tanto sofrerem, em algum momento acabamos dando de cara com a tão temida Auschwitz, seguida do título da segunda parte: E aqui meus problemas começam. Nisto até teria como pensar se tem como piorar a situação, e lhe digo que tem, pois o famoso campo de concentração é palco de uma narrativa duríssima do dia-a-dia dos judeus, que além de trabalhar duro, eram abatidos sem perdão e nem razão, além dos maus tratos constantes que sofriam, além da fome e do cansaço. E neste local nós vemos como o Vladek conseguiu não ir para os fornos durante o ano em que esteve lá, mas durante boa parte de sua estadia, ele o menciona com certa freqüência, mostrando apenas a chaminé de onde subia a fumaça dos fornos – e às vezes até demonstrando em números os Judeus que morriam.
E isto enquanto ele sobrevivia como podia, trabalhando e ajudando quem podia em alguns momentos – e sem nunca se esquecer de Anja, que estava num campo de concentração ao lado. Algo que é mostrado em mapas, que apenas mostra como a narrativa do holocausto feita pelo Artie Spiegelman é, além de artística, fiel e crua, eu diria. Em nenhum momento ele tenta nos forçar aquela situação, fazendo da fome, trabalho duro e das pessoas que simplesmente “desapareceriam” se tornar algo comum – mesmo que doesse ver aquela chaminé, como se fosse um monstro distante sempre os encarando. Um monstro que em certo momento põe a face à mostra, num momento em que o Vladek explica ao filho como que os fornos funcionavam. E devo denotar, esta parte é uma das mais difíceis de ler da obra, pois detalha cada etapa pela qual os judeus passavam naquela sessão. Sem poupar os detalhes mais tenebrosos – como os atos desesperados, os que eram queimados vivos etc. E por ser um relato real, as cenas de Auschwitz são algo cruel, escrever aqui talvez não faça você imaginar o quanto, apenas lendo para perceber a história crua com o qual o autor lida – e demonstra isto em uns quadros também, quando se coloca como personagem tentando escrever a história, enquanto sob ele há vários corpos de judeus empilhados. E creio que o Artie deve ter mesmo se sentido assim enquanto ouvia as gravações do pai lhe falando sobre todas as histórias horríveis do holocausto.
Se esta obra já lhe soa densa e complexa, calma, pois ela não se trata apenas de um retrato cru da guerra e do holocausto, mas também das marcas que o holocausto deixara em alguns sobreviventes – como o Vladek. Enquanto jovem, nós vemos um Vladek cheio de personalidade, garra e força para lutar. Um Vladek que deixa de comer pra conseguir enviar cartas à Anja, mas quando velho, preso num casamento infeliz e sempre se lembrando da falecida mulher, ele se torna irritante e cheio de manias – algo que ele herdara dos campos de concentração. Em alguns momentos o filho até se irrita com ele, gritando com o pai, que consegue encher a paciência dele. Além de que, há uma cena em que Vladek se mostra ainda mais humano, quando é denotado o racismo dele com relação aos negros, por exemplo. Algo que mencionei para mostrar que embora ele tenha sido um puta personagem, enquanto sobrevivia, ele se tornara alguém cheio de problemas em sua personalidade – assim como Anja, que sofria com o passado – algo que você saberá mais com a leitura da obra.
Após os trechos anteriores, nota-se a dureza de Maus. Uma história sobre o holocausto que não tenta ser dramática a todo o momento, que com um tom leve, faz o relato mais fiel à Auschwitz que podemos encontrar numa mídia como esta – o que deve ter sido um desafio para o autor. Aliás, a história não termina na fuga do campo de concentração, ela consegue ser cruel até mesmo quando os alemães tinham que se mudar dos campos por causa da guerra – assim como na série Band of Brothers, onde é mostrado num episódio os soldados americanos encontrando um campo de concentração que foi queimado e abandonado – matando vários judeus e os deixando abandonados e com fome. Aliás, espero que esta resenha não espante você, afinal, esta ainda é uma obra belíssima, cruel e real, mas belíssima. Vencedora do famoso Prêmio Pulitzer e indicado para o prêmio do National Book Critics Circle.
Claro, lhe recomendo fortemente o Maus, por motivos que já disse e repeti muitas vezes durante esta resenha. E sendo além, recomendo até uma releitura se possível, afinal, nós sempre temos olhos mais aguçados quando revisitamos alguma obra – e Maus tem muito a nos contar, muito.
Gustavo Souza Silva
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