A FOLHA, um conto de “CONTEXTURAS” (contos de Luísa Fresta e quadros de Armanda Alves)

Quadro de Armanda Alves

A FOLHA

Ouviu-se o seu nome no auditório: abotoou o casaco com elegância e deu um beijo tangente à mulher, que o admirava febrilmente. Era um ativista conceituado e, naquele ano, o seu projeto em prol da igualdade de género tinha atraído a simpatia dos financiadores. Alexandre era um quarentão elástico, sedutor, cabelo cortado a pente um, com discurso contundente.

O fato de bom corte e o cachecol às riscas sobre uma camisa cintada denunciavam abastança, adquirida já na fase adulta. Ao subir ao estrado o sapato envernizado chiou no piso de madeira, enquanto Lourença, a mulher, sorvia cada gesto seu.

Tomou o microfone ainda mergulhado numa copiosa chuva de aplausos. Quando falou, descontraído, começou por agradecer o apoio da família “sem o qual não teria podido conduzir a missão que se propôs”. Dirigiu palavras emocionadas à esplêndida crioula encaracolada, com um traseiro asfixiado num vestido inadaptado à anatomia africana. Qualquer um teria ficado por aí, os minutos da praxe estavam já consumidos pela evidente bazofaria. O moderador fez-lhe sinal para abreviar. Mas Alexandre ignorou-o, displicente, e ironizou:

– O Joaquim que me perdoe, mas tenho uma pequena cábula que vou passar a ler, para não esquecer ninguém; seria imperdoável ignorar um só nome dos que se empenharam neste projeto…

Ato contínuo, sacou da folha dobrada e teve um reflexo de estranheza. Pareceu-lhe minúsculo o papel que demorou a desembrulhar. Pôs os óculos e leu silenciosamente: “estou à tua espera cá fora. Desenrasca-te. Senão hoje os teus apoiantes vão saber qual é a tua ideia de igualdade de género. Há quatro menores dispostas a depor contra ti”.

Quando Alexandre perdeu os sentidos, ouviu-se um burburinho: “Coitado, o homem está esgotado: não admira, ele vive para a comunidade”. A crioula, de olhos embaciados de desespero, já voava desvairada para a tribuna.

 

 

Nota: O livro “CONTEXTURAS” (contos e quadros, de Luísa Fresta e Armanda Alves) encontra-se disponível em e-book (PDF).

 

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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