O roque caipira é um gênero musical joseense com origem em meados de 2013, sendo, hoje, o produto necessário da confluência de três vertentes estéticas da música popular brasileira: o movimento Clube da Esquina, o Rock Rural e a música regional popularizada por Almir Sater e Renato Teixeira.
Há quem se confunda e diga que o roque caipira é apenas rock rural feito em São José. É por isso que, nesse texto, iremos traçar a genealogia do roque caipira e explicar o significado dos termos “roque” e “caipira”, e no quê eles se diferenciam dos termos “rock” e “rural”.
Do Clube da Esquina, o roque caipira absorveu as tendências orgânicas de misturar a cultura regional com influências internacionais, sendo basilar para uma subjetividade que ressoa fortemente em nós (ver Para Lennon e McCartney); de certo modo São José está mais próxima de Minas do que da capital – no fundo todo morador da zona norte sabe disso. O movimento também inspirou as audácias harmônicas do gênero joseense nas suas progressões de acordes pensadas como módulos (ver O Trem Azul), e em menor medida, contribuiu para a elaboração de algumas letras pseudo psicodélicas, como O Borboleto, clássico instantâneo do gênero (e quase uma música do Lô Borges).
O vínculo estético mais direto está, sobretudo, no Rock Rural; para ser mais preciso, nos dois primeiros discos do super grupo Sá, Rodrix e Guarabyra, pois dali veio a fluidez melódica, o lirismo, o estilo vocal e as concepções de arranjo, nas quais se vê o uso de efetivos instrumentais do rock (guitarra, baixo e bateria) fundidos à instrumentação regional (viola caipira, acordeon, banda de fanfarras etc). Daqui também vem uma possível explicação para a ortografia: porque “roque” e não “rock”? Simples: Sá e Guarabyra foram figuras centrais na elaboração da trilha sonora da novela Roque Santeiro. Portanto, tudo está conectado.
A terceira grande influência é notada na música de Almir Sater e Renato Teixeira, ambos muito influenciados pelo rock rural – Almir Sater chegou a afirmar, em uma entrevista, que o grande disco que mais lhe marcou foi o Passado, Presente e Futuro, e se coloca como um artista de folk rock. Renato Teixeira, nem é preciso dizer, talvez seja o maior letrista associado à região do Vale do Paraíba. Mas há aqui uma importante chave de leitura para compreender esse vínculo, e essa chave se chama Geraldo Roca, amigo tanto de Almir quanto de Renato.
Geraldo Roca foi um cancionista folk do Mato Grosso do Sul. Talvez você o conheça por ele ter sido um dos autores de Trem do Pantanal, junto com Paulo Simões; muita gente acha que essa música é do Almir, mas não é. Roca foi um tremendo guitarrista. Também foi inventor da Polka Rock, escreveu letras profundas e lançou poucos discos com canções belíssimas; muitas delas poderiam ter sido compostas tendo São José em mente, tais como Sobre a Cidade Média e Mais Loucos do que a Média. De fato, Campo Grande parece ter problemas similares aos da “capital da cultura”, bastante sérios, todos cantados por Roca: a cidade de instituições promotoras acomodadas (cof cof FCCR cof – tossi aqui, desculpa), cheia de tesouros que ninguém valoriza, plena de possibilidades e pobre nas ações. Esses problemas, em um determinado ponto, se tornaram intoleráveis: Roca colocou um fim em sua vida no natal de 2015, sem que houvesse qualquer motivo aparente. De sua relação com a cidade onde vivia, talvez o motivo lá estivesse, mas ninguém teve olhos para ver. A grafia “roque” também é uma homenagem a Geraldo Roca.
Outras influências laterais são igualmente importantes para definir o gênero. Entre elas, as músicas de tom regional de Raul Seixas (como Trem das Sete e Ouro de Tolo) e talvez alguma coisa de Cláudio Nucci, Zé Renato e Arrigo Barnabé (sobretudo na construção das principais levadas do gênero, a serem abordadas em um texto futuro). Como influência extra musical, pertence à estética do roque caipira o total desapego por musiquinhas de amor e por temas naïf (cirandas, natureza, amizade, inocência, florzinha, gratidão, roquinhos broxa e outras bobagens que apetecem os bunda-moles), prevalecendo o pathos filosófico, crítico, satírico e humorístico, que chamo, para economizar palavras, de Alegria, Vigor ou Saúde. Quando o amor é cantado (Dois Birutas, Cachorro Caramelo), não é visando a sedução. Quando a natureza é cantada (Cachoeira), não é com o objetivo de ser trilha sonora de campanha para evitar usar plástico. E assim por diante. Se você ouvir um cirandeiro em São José falando “gratidão” e usando expressões como “vamos somar”, “fortalecer a cena”, “amor livre” e “empreendedorismo”, você já sabe: não é um roqueiro caipira, é apenas um barbudo que gasta bastante energia na persona pública e que finge ser músico.
Falei bastante sobre a estética e sobre a questão do roque, mas ainda não abordei o uso do termo “caipira”. Você poderia perguntar: “porque caipira e não rural?”. Pois bem: ninguém pode negar que São José dos Campos tem muitos prédios. Tem algumas avenidas grandes, tem algum comércio, algum destaque industrial, alguma tecnologia. É uma cidade bem desenvolvida em termos nacionais. Não é um município de economia baseada na plantação de abóboras. São José tem pouca coisa de rural – o rural aqui é cosplay.
Ainda assim, o joseense não deixou de ser caipira. E isso não é um xingamento! O que caracteriza o caipira? Eis minha definição: é aquele sujeito que sente uma inadequação com os padrões e costumes de outros lugares. Sabe quando você está no centro de São Paulo e pensa “meu Deus, como as pessoas vivem aqui?”. Então, esse é o caipira dentro de você. Ou quando eles trocam a forma como vendem bilhetes de metrô, e você não sabe direito como a coisa funciona; quando você chega em um bairro novo e não sabe identificar os códigos de perigo e tranquilidade. Quando você desce em uma nova estação e é passado para atrás por algum golpista safadinho. Isso é ser caipira.
Há uma diferença entre viver em um lugar e em outro, e qualquer disparidade nessas vivências produz a informação “caipira”. O caipira é diferente do rural, pois o rural se adequa ao campo. Mas o caipira joseense, acostumado ao Center Vale, também se sentirá deslocado se, subitamente, tiver que tirar leite da vaca. Percebam que a caipirice é uma condição muito específica, e nada tem a ver com mato ou roça (mas tem a ver com o Roca). Acho que o termo está muito bem explicado agora.
Um leitor empolgado poderia afirmar que, em 2023, poderíamos comemorar 10 anos da invenção do roque caipira, mas isso seria uma inverdade: a origem foi em 2013, mas somente hoje o roque caipira pôde ter seus atributos mapeados e ser categoricamente definido; assim, é possível pensar que 2022 é o ano zero desse gênero enquanto conceito acabado, tendo como marco inaugural o álbum A Uma Hora de Tudo. Para escutar o marco zero do roque caipira, clique aqui.
Acho que precisamos de um segundo texto heim Bruno!
Oi Joana! Já estou pensando nisso… obrigado pela leitura!
Bruno, arrasou como sempre…Sou muito fã dos seus textos e fico muito feliz que tenha voltado. Sei que seu tempo é escasso, mas faz um esforço para nos presentear com essas pérolas, que só você sabe destilar. E sobre o roque caipira, foi um show de conhecimento, queremos mais.
Bem vindo de volta Bruno Ishisaki
Quando sobra um tempinho, eu dou um jeito de postar algo. Pretendo fazer um repost dos textos anteriores, mas quero revisá-los antes. Abraço!
Seria ‘Na Cidade de São José’ uma ode obscura por trás da vida bem sucedida de nossos primos que servem sempre comparação com a nossa nesse grande vale do desenvolvimento?
Abraços!
kkkk é mais ou menos por aí. Tb é uma homenagem, de certa forma.
Bruno continue a descrever esta cidade e nossa região. E nossos “ARTISTAS”. Tive em Guarulhos e Sampa no mês passado. E pensei num roteiro de um longa retratando o caipira atual. Gosto muito de passear no metrô. Arrume seu tempo de escrita. Grande abraço.
Obrigado por postar o álbum, Joka!