Por Milton T. Mendonça
Gilfreire caminhava rápido pela estrada de terra que leva à cidade onde mora a muitas décadas. Estava bem escura aquela noite quente de verão. O céu com uma lua minguante opaca, quase não trazia luz para debaixo daquelas folhagens, que meio encobriam toda a largura da estrada estreita. O céu estava limpo e se podia ver milhões de estrelas, mas a luz, por algum mistério da natureza , não conseguia iluminar a paisagem.
Ele caminhava com passos regulares, ainda não bebera nada e estava chateado. “aquela lata velha me deixou nas mãos outra vez, mas logo estarei no bar do Lúcio e resolverei o caso” – se animava pensando consigo mesmo.
Chegou no topo da estrada e começou a descer, podia ver ao longe as casas baixas, separadas por cercas vivas – uma mania que chegara com a mulher irlandesa. “Ficou bonito” – resmungou, se lembrando do dia em que ela chegara.
O susto ao ver alguém com aqueles cabelos vermelhos – sorriu. Pensara que eram pintados. Não eram. Lembrou-se do tapa e da risada dos amigos. O olhar verde, raivoso, cercado por sardas vermelhas que ela lhe dera, nunca mais lhe saíra da cabeça. A mecha de cabelos ainda estava guardada. Uma angustia oprimiu seu peito.
Um grito de coruja lá no meio das árvores o fez voltar ao presente – “Estranho” – falou alto. “Faz tempo que não aparecem corujas por aqui”.
Parou e observou mais devagar cruzando com o olhar todo o horizonte. Viu-a voar ao redor do pé de jacarandá, o mesmo que sempre fora protegido pela irlandesa e pousar em seu galho. Quarenta anos de sossego e boa alimentação o deixara alto, copado e com galhos grossos feito braços, com mãos pequenas e dedos longos e finos.
Saiu da estrada e se embrenhou pelo capim alto chegando mais perto da coruja. Ela era azul escura, quase negra, semi-escondida entre as folhas.
– O quê quer? Por que me incomoda desse jeito, mortal ignóbil e tolo?
Assustou-se ao ouvir a pergunta e procurou a coruja que o olhava com seus olhos arregalados e vermelhos.
– Quem disse isso?
– Sou eu, matuto infeliz! – a voz esganiçada exclamou raivosa – O que quer de mim?
– A coruja?! é a coruja que está falando comigo?
– Tolo! Você acha que corujas falam?
– Mas então, quem está falando comigo se só vejo a coruja?
– Aqui, seu matuto cego e burro. O jacarandá que está na sua frente
Suas pernas começaram tremer e Gilfreire ficou gelado pelo susto. Depois do choque, mais calmo, sem nenhuma outra opção a não ser tentar recuperar um pouco da dignidade, perguntou:
– Mas como pode uma árvore falar? Árvores não falam!
– Você não quer que eu explique tudo, não é mesmo? E se não quer nada comigo, tenho um recado para você.
– O quê?! Um recado? Quê recado?!
– Precisa levar um recado para a Nina!
– A irlandesa?
– Sim, a irlandesa, pode fazer isso sem aprontar nenhuma confusão?
– Bem…posso. Se não tem outro jeito! Qual é o recado?
– Diga para ela que seu pedido foi aceito, agora ela que arque com as conseqüências.
– Só isso?
– Consegue dar esse recado? Repita para mim, vamos. Ande logo que não tenho tempo para futilidades.
– O pedido dela foi aceito, agora ela tem que arcar com as conseqüências,
– Certo! Tá bom assim. Não mude nenhuma vírgula!
– O quê quer dizer isso?!
– Hei! O quê quer dizer isso?!
Um silêncio pesado pairou sobre ele como uma imensa pedra, o esmagando. A coisa tinha falado dentro do jacarandá e depois sumido. Gilfreire olhou ao redor. Circundou a árvore e nada. Até a coruja havia desaparecido.
Obstupefato voltou à estrada e rapidamente chegou a cidade. Não passou no bar do Lúcio e nem foi para casa. Rodou pela cidade aflito.
“Como chegar até a casa da irlandesa e entregar o recado?” Perguntou-se angustiado. Nos últimos vinte e cinco anos, tentara conversar com ela e não conseguira. Odiara-o depois da brincadeira. Queria sua mecha de cabelo de volta mas não queria perdoá-lo. Ele não entregara e, por vezes, na adolescência havia colocado no chapéu e circulado pela cidade humilhando-a. Depois pedira perdão, percebera que sua dor era verdadeira e tentara mostrar arrependimento. Mas ela não aceitara. E ele não entregara os cabelos.
Passou em frente à casa de Nina e mesmo sem olhar sabia que a fonte jorrava água e, se não fosse noite,conseguiria ver os pássaros tomando banho e o gato escondido atrás da amoreira espreitando selvagem. Se não fosse noite, a porta em arco do alpendre estaria aberta e ele veria vasos de rododendros floridos, vicejando em seu interior.
Mas era noite e o jardim estava escuro como breu. Apenas a fachada da casa com sua iluminação precária confirmava alguma vida. Olhou o segundo andar e viu a janela de Nina aberta e iluminada. Uma sombra passou pela cortina de renda que escondia sua intimidade.
Gilfreire parou em frente à grade de ferro e observou. “Deveria assoviar como fazia?” Lembrou-se daquela única semana em que quase conseguira se aproximar. Lembrou-se do beijo. Rápido, porém doce…muito doce.
Mas então, a história da mecha ressurgiu como brasa ao vento e queimou a ponte que construíra passo-a-passo. Desistira. Mas não sem a procurar em outros corpos. Rodara por aí, atrás da irlandesa, mas não a encontrara em lugar algum.
Nos últimos dez anos, quando voltara de suas viagens, a vira muitas vezes. Arriscara um cumprimento ou outro, retribuído de cara amarrada e com aqueles olhos verdes soltando faíscas.
Não tivera coragem de se aproximar.
“Que desejo será esse que recebera?” – Gilfreire, se perguntou perplexo. Resolvera falar com a moça na manhã seguinte por estar tarde e não querer incomodá-la àquela hora da noite. Encaminhou-se para casa onde, após fazer a higiene e se alimentar daquela maneira espartana que lhe era peculiar dormira profundamente. O sono, longe de ser tranqüilo, o levou a grandes batalhas onde após vencer correntezas perigosas e salvar donzelas que se queimavam nas fogueiras em praça pública, o colocaram em um cadafalso e lhe cortaram a cabeça.
Acordou com um grito no exato momento que a lâmina do carrasco bateu em sua nuca. Olhou em volta e as paredes brancas de seu quarto o tranqüilizaram. Da janela dava para ver a luz que entrava em abundância. levantou-se de um pulo. Vestiu-se para a visita que faria aquela manha.
Foi ao armário e, de dentro de uma caixa de madeira incrustada com pedras, retirou a mecha vermelha do cabelo da irlandesa. Tocou-o e uma onda de ternura invadiu seu peito. Colocou a mecha de volta à caixa, guardando-a no bolso do paletó.
Saiu de casa, bateu a porta atrás de si e caminhou devagar cruzando o centro. Virou no mercado municipal e subiu a rua.
Chegou em frente ao portão e tocou a campainha, que ressoou como um sino. A porta foi aberta por Bernarda, a governanta negra, que atravessou o jardim abrindo o portão de ferro. Cumprimentou-o com uma expressão estranha no rosto enrugado. Encabulado, pediu para falar com Nina. A mulher, com aquele jeito orgulhoso de sempre, deu passagem esperando impaciente que entrasse.
Atravessaram o jardim e Gilfreire sentiu saudades das vezes que atravessara aquela pequena calçada de lajotas vermelhas, há muito tempo atrás, encerada e com aquele brilho que dava medo, tamanha profundidade se percebia no seu reflexo.
Entrou na sala e viu que nada mudara. Sentiu como se o tempo tivesse parado. O relógio cuco tocou duas vezes do outro lado da sala. Sentou-se no mesmo sofá macio, decorado com o mesmo tecido coberto de pequenas madressilvas coloridas, além da realidade e esperou.
Momento depois, viu a moça de cabelos vermelhos descer as escadas e se levantou tímido. Ela se aproximou e estendeu a mão
– O que o senhor deseja?
Perguntou afável.
– Venho lhe trazer um recado.
Gilfreire respondeu olhando fixo para aqueles olhos verdes que o hipnotizavam.
– Recado? Recado de quem se não temos amigos em comum?
Falou seca.
– Eu não sei de quem, só sei que me deram um recado para entregar para você
Respondeu, começando a se irritar com o seu jeito arrogante.e provocador.
– Então passe o recado logo
Resmungou entredentes.
Gilfreire ia responder com o mesmo tom de voz, ríspido e desdenhoso como sempre fazia, quando algo lhe chamou a atenção. Olhou para Nina e, no meio das sardas que tanto o impressionavam, havia uma ruga. Uma pequena ruga que o fez refletir.
Num impulso retirou a caixa do bolso. Ela deu um passo atrás assustada, quando o viu estender a mão em sua direção.
– Espero que esse presente a faça me perdoar.
Falou suavemente entregando a caixa de madeira, retornando ao seu lugar.
Ela abriu a caixa e retirou de dentro a mecha de cabelos. Segurou-a nas mãos levantando ate próximo aos olhos. Mirou Gilfreire de uma maneira selvagem e se virou subindo a escada. Antes de desaparecer no corredor, parou e perguntou:
– E o recado?!
Gilfreire, se aproximou, colocou a mão no corrimão e respondeu:
– O jacarandá mandou avisar, olhou para ela e deu de ombros, que o seu
pedido foi aceito. Mas você vai ter que arcar com as conseqüências!
Ela ficou pálida, refletiu, e depois sorriu de uma maneira que o deixou espantado, a transformando, por um segundo, naquela jovem adolescente de antigamente. Olhou-o com ternura, agradeceu, e subiu desaparecendo no andar superior.
Gilfreire ficou paralisado enquanto um encantamento tomava conta de seu coração. Havia finalmente sido perdoado e desta vez – prometera a si mesmo – não a deixaria escapar.
2017
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