ADAMA E JACINTA

"old electric tram , Elevador da Bica , Lisbon"

28 de Outubro de 2016, cerca das cinco da tarde. A mulher morena entrou na estação do Rossio, em Lisboa, de regresso ao subúrbio onde morava, pensando na inefabilidade dos dias. Tinha passado duas horas da manhã à conversa com uma incrível terapeuta e o seu estado de espírito era o mais otimista possível. A psicóloga era uma mulher na casa dos cinquenta, com uma pele de pêssego e um ar bondoso, olhos expressivos e sorriso acolhedor. O corte de cabelo curto acrescentava-lhe simplicidade e encanto e o encontro das duas mulheres, terapeuta e paciente, decorreu num clima de paz e respeito mútuo. A conversa surgiu naturalmente, nenhuma palavra parecia forçada e as revelações foram-se sucedendo por uma ordem de prioridades que a paciente tinha já estruturado tempos atrás.

A psicóloga quebrou o protocolo descrevendo alguns episódios da sua vida pessoal. Falou dos filhos e das suas carreiras, falou de si mesma e das suas escolhas profissionais, do seu interesse por várias áreas de estudo. Não foi uma apresentação sumária nem tipificada, foi uma conversa entre duas pessoas que noutras circunstâncias poderiam ser amigas.

A mulher morena era robusta e coxeava ligeiramente. A terapeuta interessou-se por esse detalhe que se explicava sem mistério. Tratava-se de um pequeno acidente doméstico que tinha deixado sequelas difíceis de ultrapassar. Coisa pouca, mas que se notava.

Depois a paciente foi encontrar-se com uma amiga querida perto dali, falar de tudo e de nada, trocar algumas confidências, quase nunca por palavras, que entre os amigos se tornam a dada altura dispensáveis.

Embora andasse com dificuldade, a mulher morena decidiu comprar um pequeno mimo com o jantar. Mais tarde ia encontra-se com o seu companheiro e queria que partilhassem uma refeição saborosa e agradável, como tinham combinado na véspera. Esse pensamento ia-se avolumando à medida que as horas passavam. E a alegria desse encontro em perspetiva deixava-a ansiosa e quase feliz. Uma felicidade que nada tinha de pacífico, mas antes a ia corroendo um pouco e fragmentando a alma. Por isso, ao entrar na estação ferroviária, os seus pensamentos confundiam-na e sentia-se intranquila.

Escolheu a escada rolante automaticamente, com o olhar fixo no nada. Apercebeu-se no entanto de uma enorme agitação ao cimo da escada: uma adolescente jazia, inanimada, enquanto uma mulher, visivelmente ansiosa e desesperada, não conseguia conter as lágrimas. Essa jovem era Adama, como se veio a saber mais tarde, e a mulher ansiosa era a sua mãe, Jacinta, que aparentava rondar os 40 anos e estava em completo desassossego, transtornada pelo desmaio da filha.

À volta das duas começava a juntar-se uma pequena multidão, e chegou mesmo a aparecer um idiota querendo filmar a cena, provavelmente com o intuito de partilhá-la nas redes sociais. A morena assegurou-se de que o INEM ainda não tinha sido chamado e depois de consultar a mãe e pedir informações básicas sobre a moça, ligou para a emergência médica.

O diálogo foi curto:

— Boa tarde, estou a ligar para comunicar uma emergência à entrada da estação do Rossio. Há uma jovem desmaiada na escada rolante.

— Quem está com a jovem?

— A mãe — respondeu a morena.

— Pergunte-lhe se a jovem é epilética ou diabética.

A morena explicou que a rapariga era epilética, tinha insuficiência renal, e acabava de ter alta da Estefânia; nessa altura já tinha consultado a nota de alta e ficou com uma ideia da complexidade do quadro clínico.

— Belisque-a com força nos braços a ver se ela reage à dor.

Assim se fez mas sem sucesso. Depois a mulher confirmou que a menina tinha pulso e que respirava normalmente.

— Ponham-na virada sobre o lado esquerdo e aguardem a chegada do médico.

Ficaram umas quatro ou cinco pessoas à volta da moça e da mãe. Entretanto a jovem tinha recuperado os sentidos e estava sentada no chão, visivelmente agitada, chorando convulsivamente. Gritava em crioulo de Cabo-Verde que não queria voltar para o hospital. A morena ali estava com mais duas mulheres cabo-verdianas e um homem idoso com uma súmbia e um olhar solidário e ternurento. A mãe, Jacinta, foi-se acalmando também. Não tinha ninguém a quem telefonar, aquilo era um assunto de vida ou de morte entre mãe e filha. A morena sentiu uma tremenda empatia por aquelas duas mulheres, Jacinta e Adama. Reviveu a sua própria história. Em dez minutos chegou o médico do INEM e a polícia pediu, de forma rude e indelicada, que as pessoas se afastassem:

— O espetáculo acabou. Podem voltar às vossas ocupações. Obrigado mas agora é…dispersar.

A morena falou antes de pensar:

— Ninguém está aqui a ver espetáculo, estamos aqui para ajudar, fui eu que chamei o INEM. Quem queria diversão já se foi embora.

Mas depois compreendeu a atitude do agente; no teatro da vida, cada um representa o papel que lhe cabe. Despediu-se rapidamente de Jacinta com um afago no ombro.

— Tudo a correr bem e coragem. Vai correr tudo bem.

Jacinta ensaiou um sorriso triste, sem tirar os olhos da filha. A morena correu, coxeando para apanhar o comboio e fez um pedido, intimamente, em forma de oração: Meu Deus, faz com que esta menina se cure, sobreviva e melhore. Eu só quero que ela viva, e que viva bem. Em troca prometeu entregar-lhe o seu amor, um amor doente e em fase terminal. O meu amor em troca desta vida.

Pensou que não estava a ser absolutamente altruísta na medida em que estava a entregar algo que já estava penhorado, um amor hipotecado à morte. E também era uma troca um pouco insensata, pois um assunto não tinha a amais remota relação com o outro. Mas era tudo o que tinha.

Sobre Luisa Fresta 30 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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