ÁGUA, LAMA E LÁGRIMA

 

E já não era rua. Era rio. E nem estrada, nem casa. Tudo água que se ia. E com ela tanta dor, tanto medo, tanto grito que se fazia.
Barro e lama, e cachorro morto. E o corpo de todos que boiavam, nadavam, afogavam. Agarravam nos muros, árvores, telhados, torres. Que também cediam. Revirados, revoltados, destroçados, envolvidos em água suja..
A cidade era lama. Lágrima. Lixo. Tudo era água e lixo. O lindo e o caro. O fácil e o raro, tudo lixo. Montes enormes de lixo. Memórias de fotografia e retrato. Tudo aos apagado. Borrado. Amontoado. Um barulhento silêncio na alma. Que não cedia. A alma ficou. Firme. Cravada. Alma teimosa.
Mas todo o resto era. Passado. Tudo tinha sido. Tudo não era mais. E o povo sentava e pensava. Aos montes. Abrigados. Olhos de não acreditar e entender. Muita água. Por demais correnteza. Casa que desanda. Ruas que afundam, cavalos que surfam casas. Corpos que resistem. Corpos que se agarram… e se afogam. Gritos que sufocam. Imagens que cortam. Na carne. Fundo. Fenda que não fecha. Falha.
Discursos, falas, prosas, versos. Tudo se abraça e afunda. O que fica é o lixo, o detrito, o resto de tudo. Resto.
Casas vazias. Lugares sem casas. A ausência da construção. Do tijolo, da janela, do aceno, do abraço… a água. Da chuva, do rio, das lágrimas. A força. A fraqueza do homem. A burrice do homem. A incompetência do homem.
Meio corpo, corpo inteiro. Caminham os que lutam. Carregam, arrastam, varrem, empurram, retiram, atiram, desovam toda uma vida na calçada.
Os pés, descalços deslizam na camada fria da lama. A alma desliza no corpo. Frio da criatura que insiste. E é inverno. E o frio complica. A criança chora. A gripe, a dor. O corpo que treme. Toda a cidade treme. Todo o Estado. E as pontes caem. E as casas, e as cercas, e os portões, e as placas e as garrafas, e os tonéis de veneno cospem. E a água é tóxica. E os mortos antes em seus jazigos, lavados pela água, enterrados pela lama. E os cães sem dono nas ruas. E os gatos sobre os telhados. E os peixes mortos, e o cheiro de podre…
E os braços que ajudam e os barcos que gritam, e a ajuda que chega os caminhões que enfrentam as estradas. E os voluntários que sofrem, que varrem, abraçam… e também choram.
E os espaços devastados. E o dinheiro perdido. Os empreendimentos fracassados. E as contas pra pagar, as roupas, a comida, a escola…
E os amigos que não voltam. Que o rio comeu? E os familiares? E a mão que não aguentou a outra mão? E o grito submerso. E as pessoas nas torres, nas árvores, nos telhados. Por dias. Por dias. Secas da fome e da sede. Mas ensopadas de tristeza e chuva?
E o que fazer. Como agir. Reconstruir, fugir, mudar, resistir, sentar e chorar?
E a comporta aguentará, e a distância é segura?
E o político continuará negando o que diz o cientista? E a natureza? Apanhando?
E os livros que não serão lidos. Mortos e boiando. Mortos e enterrados na lama. Mortos e empilhados nas calçadas.

E a chuva que não para…
E a chuva que não para…

Sobre Ronie Von Rosa Martins 27 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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