Amar: um vexame libertário!

Roy Lichtenstein – “Kiss V, 1964”

Amar: um vexame libertário!

Por Eliane de Fátima Camargo*

“O amor, quando se revela, não sabe se revelar. Sabe bem olhar p’ra ela, mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente, não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente…Cala: parece esquecer…”[1] Não vejo outra forma de começar um texto sobre o amor, senão pela linguagem poética. Mas longe de ser este, um texto que diz o que é o amor, adianto que mesmo as mais belas palavras inventadas, seriam insuficientes, pois o amor não se deixa conceituar. É como nos diz o poeta Rainer Maria Rilke (2001, p. 25): “as coisas estão longe de ser tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra pisou”. A poesia talvez seja o que de mais próximo podemos chegar de dizer o que é o amor, imagino que seja por que ela não é uma escrita vazia de sentido, mas é quem escreve, com o que sente, com o que vive. O escrito e quem escreve se entrelaçam como em uma dança, uma dança filosófica. Escrita que toma forma de liberdade, sem imposições, assim como o amor, ela é mais sentir, do que explicar.

Nas mais variadas formas de amar, a forma que busco pensar aqui é o amor de amantes, sejam eles unidos pelas nomenclaturas institucionais (namoro, casamento,etc) ou pela vontade de se terem fora dessas convenções sociais. Me coloco a escrever, ainda que limitada pela linguagem, e me desafio a compreender como se vive o amor em sua plenitude. Esse, que ao meu ver, se aconchega com a liberdade, e, é dentro desse aninhamento que pensaremos o assunto.

Em seu livro Ame e dê vexame, Roberto Freire nos convida a pensar o amor livre como possibilidade de uma vida mais autêntica. Em uma sociedade que usa da repressão e da culpa para nos aprisionar, amar plenamente é um ato libertário. Devo dizer, porém, que não se trata desse amor que o capitalismo vende como sendo o certo, esse castrador do sentir, que nos limita a buscar algúem que nos complete, que supra as nossas carências. Também não é esse que aprisiona e por isso tantos fogem. Nem mesmo o amor, que se restringe nas palavras ditas, pois como disse, ele foge à compreensões concentuais. Mas o amor que se faz livre e que é revolucionário na medida em que busca a totalidade do ser. Que é corpo, gesto, intensidade, desejo…aquele que os amantes vivem na espontaneidade de corpos que se querem, dos olhares que dizem o não dito. Conforme nos escreve Freire (1990, p. 19):“quando se vive uma paixão, me comove ainda mais quando, através da linguagem misteriosa e encantada do silêncio e da solidão conseguimos dizer para nós mesmos, não apenas tanto mas tudo o que e como se ama”. Em sua essência de movimento constante, o amor sabe ser. Um amor revolucionário, alegre, lúdico, anarquista!

Alguns dizem que se queremos ouvir a verdade devemos perguntar às crianças ou aos embriagados. Às crianças porque ainda conservam a sua natureza espontânea, ainda não se afetam pela reprovação alheia, tão distantes dos adultos, não temem, mas amam a liberdade. Já os embriagados encontram-se em um estado de espírito em que o vexame não é proibido. São tantas as histórias de declarações arrebatadoras e vexatórias ditas ou ouvidas em momentos de profunda ebriedade. Talvez seja o grito do corpo, que vivo,  mas reprimido, busca forças para lutar contra um sistema castrador. Bem verdade, uma sociedade que se contrói pela hipocrisia burguesa ao menos precisa deixar algumas válvulas de escape, onde possamos fazer o que sentimos, ainda que controlados por mecanismos fora de nós. Uma liberdade que longe de ser libertária, é alienante.

Ah! A Liberdade! Como não se deixar agraciar pelo seu convite ousado. Sem dúvidas uma das palavras mais bonitas que existem no dicionário. Não é somente bonita a palavra, mas o som que emana de sua pronúncia e o significado que se constrói nela. Por certo, ela não é posse de todas as pessoas, pois sabemos que umas são mais livres que outras, seja por imposições econômicas, sociais, culturais ou pelo próprio medo de apropriar-se dela.  Mas ainda assim, a poesia vibrante que envolve a sua busca é de uma beleza arrebatadora.

Roberto Freire (1990, p.38) em sua escrita nos diz: “Portanto, nada temos a temer do amor pois ele estará sempre em nós, inteiro e pronto para ser vivido quando for chegado o momento”. De fato, não é o amor que tememos, uma vez que ele é parte de nós, mas o medo vem de amar, de perder o controle; é mais confortável, arrumado, viver sem riscos, sem vexames! E amar é se deixar bagunçar.

Libertar-se é bonito, mas implica desconstruir certezas, nos mostrar vulneráveis. Além disso, todo aparato social do capitalismo autoritário, promove a vontade de posse das coisas, das pessoas e de seus sentimentos, por isso, buscar a liberdade é também abdicar de poderes e este é um processo que demanda muita luta, na maioria das vezes contra nós mesmos.

Por fim, e sem a pretensão de concluir coisa alguma, considero que não existe amor vivo, sem a coragem de vivê-lo plenamente. É preciso coragem para amar sem pudores, sem sacrifícios. Pois amar em sua plenitude, demanda um amor livre, rebelde, que por sí é belo e em sua beleza se faz um vexame libertário!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREIRE, Roberto. Ame e dê Vexame. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1990.

PESSOA, Fernando. Presságio. Disponível em:

http://vocedebemcomaleitura.blogspot.com/2016/12/pressagio-fernando-pessoa.html

RILKE, Maria Rainer. Cartas a um jovem poeta e A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. Trad. Paulo Rónai e Cecília Meireles. São Paulo: Editora Globo,2001.

[1] Poema de Fernando Pessoa: Presságio, 1928.

*Eliane de Fátima Camargo é graduada em Filosofia e Sociologia e atualmente fazendo mestrado em filosofia.

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