Bacurau panorâmica vertical TBT

BACURAU PANORÂMICA VERTICAL

Por Diogo Gomes dos Santos*

Mesmo não sendo indicado ao Oscar, “Bacurau”, 2019, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é um filme do nordeste brasileiro, que conseguiu causar um dos maiores rebuliços, pouco visto na história do cinema nacional, seja pelo momento político em que ele aconteceu, ou ainda está acontecendo, seja pelos prêmios e críticas que recebeu, ou por ter caído no gosto popular, resultando nos comentários favoráveis nas redes sociais, enfim por seus próprios méritos.

É importante localizar o filme na história do cinema, para isso,  pede-se  retroceder em uma viagem longa no tempo, convergindo com as ideias iniciais do cinema mudo Soviético, dos primeiros anos da Revolução Bolchevique de 1917, com os filmes de Sergei Eisenstein (1898-1948), Vsevolod Pudovkin (1893-1953), Dziga Vertov (1896-1954), passando pelo Neo realismo italiano, de Roberto Rossellini (1906-1977), Vitório de Sica (1901-1974), Luchino Visconti (1906-1976), e com o Novo Cinema Novo Brasileiro, todos emanados em ideais cinematográficos análogos, que preferiram trabalhar com não atores ou profissionais em início de carreira e cenários naturais, recursos que conferem acentuada realidade aos filmes.

Ao filiar “Bacurau” ao Cinema Novo Brasileiro, pesa sobre seus ombros, todo uma carga histórica que o qualifica e justifica sua ampla soma de referências. Os diretores invertem o olhar, adotam o ponto de vista do sertão para o litoral, dialogando com filmes como “Vidas Secas”, 1963 de Nelson Pereira dos Santos; “Os Fuzis, 1964, de Rui Guerra; “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964, de Glauber Rocha, entre tantos outros.

O filme abrange várias possibilidades narrativas, gêneros, alegorias, enquadrá-lo a um, empobreceria sua essência, sua história sobre uma cidadezinha homônima, que foi retirada do mapa, na qual sua população foi negociada à revelia, para servir de alvo à “caçadores” estrangeiros para extravasarem suas frustrações. Eliminado os habitantes, o acesso às suas riquezas naturais seria facilitado.

Inicialmente é um filme desconexo, uma sequência não combina com a outra, quando o espectador tenta se conectar com o enredo, outra pista é apresentada, até que um grande painel vai se formando e acontecimentos estranhos começam a fazer sentido. A certa altura do filme, o professor e seus alunos descobrem que a cidade sumiu do mapa, alguns assassinatos misteriosos e uma espécie de disco voador é visto seguindo um morador do vilarejo de Bacurau.

Ocorre que o filme se desenvolve a partir de uma estrutura narrativa, em que predomina a ação da personagem coletiva em detrimento da individual. Isso suscita aberturas de infinitas reflexões. Os vários núcleos de personagens, seja em torno da médica Domingas, dos forasteiros, do professor, de Lunga, Teresa, Pacote, ou de tantos outros, são personagens com vocação de protagonistas, trazem consigo imensa carga dramática, mas suas ações ocorrem no campo comunitário, ninguém age por conta própria.

No cinema hollywoodiano é corriqueiro a frase: “agora é pessoal”, principalmente quando o protagonista não reconhece nos mecanismos da sociedade a qual ele está inserido, os meios para solucionar seu problema, ele então, tenta resolver a questão por conta própria. Esse diferencial faz de “Bacurau”, uma exceção na produção audiovisual contemporânea.

São inúmeras as referências a gêneros e filmes atribuídas a “Bacurau”, gosto de pensar numa possível visita ao filme “Os Sete Samurais”, 1954, de Akira Kurosawa. Para se proteger do emitente inimigo, um pequeno vilarejo do Japão medieval, tem sua colheita saqueada anualmente, indefesa e faminta a população contrata samurais de conduta duvidosa, em situação de miserabilidade, para os defender. O pagamento é dividir a comida escassa com eles. A semelhança entre os dois vilarejos, é de muita proximidade. Em ambos os filmes, a população se une na defesa da cidade.

Incluo duas outras referências, a primeira acompanhada da banda sonora, com a música “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré, peça da trilha sonora do filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, 1971, de Roberto Santos, apresenta oportuna homenagem, não só ao filme e seu diretor, mas também ao cantor, atualizando metaforicamente sua música, com o que vivia o país no período ditatorial em que foi lançado, com o momento atual. No mesmo ano, 1971 foi lançado nos Estados Unidos, o filme “Sob o Domínio do Medo”, de Sam Peckinpah, que flerta com “Matraga”, ambos centram sua ação na redenção do protagonista, já em Bacurau, a busca redentora é coletiva, mas o diálogo entre eles é evidente.

A alusão distópica da sociedade brasileira com a de Bacurau, tem colocado o filme no centro do debate, acerca das mazelas brasileiras. É compreensível a polemica em torno do filme. O público estabelece empatia, como se fosse “amor à primeira vista”, parece que o que acontece na tela, está acontecendo com público no seu dia-a-dia. Assim a química acontece, funcionando, sem intermediários, é uma espécie de conversa, olho no olho, onde o lugar da escuta e o respeito ao diferente são reverenciados.

O filme de Mendonça e Dornelles está recheado de alegorias, metáforas, tudo embaralhado “como se fossem farinha do mesmo saco”, mas se bem focado a cabeça continua valendo uma sentença, como por exemplo o significado da “pílula” consumida pela comunidade, ou o bacamarte empunhado na horizontal, o pio da Coruja anunciado na trilha sonora, ou a comunidade ligada virtualmente e em tempo integral no WhatsApp, ou a água que sai do caixão, e finalmente a brincadeira das crianças, que tudo isso significa para cada um dos espectadores? Outro fator é o papel do museu numa cidadezinha dos confins do Brasil, estranha instituição que cuida de coisas mortas, e o senso comum dirá: será um lugar do presente? Quem cultiva fotografias velhas, mas dotadas de memórias, e mesmo assim sobrevive, além do desdém de visitantes? O que não é diferente do tratamento que essas instituições têm recebido do governo brasileiro.

Mas acima de tudo, “Bacurau” é um filme concebido para a grande tela do cinema, repleto de atrativos visando agradar o maior número de consumidores possível, e talvez tenha conseguido atingir um número grande de formadores de opinião, daí seu grande sucesso em meio as acusações permanentes do governo, na tentativa difamar e desmontar a indústria audiovisual brasileira, que vive um dos seus melhores momentos criativos, com inúmeros prêmios internacionais, salas lotadas, sucesso do setor da cultura brasileira, que equivale a 2,5% do PIB, em torno de 170 bilhões de reais, empregando cerca de 5 milhões de pessoas, formais e informais, quase 6% de toda a mão de obra brasileira.

Vida longa à “Bacurau”, “Democracia em Vertigem”, “Dois Papas” e tantos outros filmes que estão e os que vem por aí!

*Diogo Gomes dos Santos, é cineclubista, cineasta, historiador, mestrando em Estética e História da Arte pela USP.

Sobre Diogo Gomes dos Santos 11 Artigos
Diogo Gomes dos Santos Diogo Gomes dos Santos, Cineasta, Cineclubista, Mestre em Estética e História da Arte, possui pós-graduação em Estudos Literário, graduado e licenciado em Historia, roteirista, diretor, produtor com vários prêmios nacionais e internacionais. Diretor do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros/Delegado junto a Federação Internacional de Cineclubes.

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