I
Chegaram os dois à galeria de arte.
Tinha que aplicar aquele retorque no quadro que pintou, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. Disse para o filho, aborrecido por estar ali àquela hora da manhã, obrigado a acompanhar o pai na empreitada insólita:
– Você distrai o segurança com uma história qualquer, diz que está passando mal, sei lá, pede pra ele te acompanhar até a entrada da galeria para tomar um ar fresco…
– Tudo bem, vou tentar. Mas vê se anda logo com essa bendita pincelada, pai!
– Sim, serei rápido, é só um acertinho mesmo. Coisa à toa.
II
No dia seguinte, estava de volta. Definitivamente, aquelas uvas sobre a mesa não ficaram boas, faltava um quê. Um pigmento lilás sobre o verde, em pelo menos duas das uvas do cacho. Fora que a textura da tinta sobre a tela, ali naquele ponto, ficou meio grosseira. Olhou para os lados para se certificar se estava mesmo sozinho. Pensava com seus botões de madrepérola: “O quadro é meu, tenho direito de consertar o que bem entender… não vou conseguir dormir nunca mais se não fizer isso”.
III
Não, não vou legar à posteridade uma obra imperfeita, disse, como se estivesse dando uma bronca em si mesmo. E enquanto um grupo de estudantes de belas-artes discutia a respeito da autoria controversa de um quadro próximo, de um pintor do século 16, aproveitou para tascar um verde-musgo nos ramos de uma árvore.
– Ah, agora sim! Comme il faut!!! Não, acho que piorou… o que foi que eu fiz, meu Deus!
– Pardon, monsieur? O senhor disse alguma coisa?
– Merde… merde, merde, merde!… desculpa, não é nada não, estou pensando alto, só isso.
E reclamava à própria sombra:
– Turistas. Deviam proibir turismo em museus e galerias de arte. Que vão comprar perfume na Le Bon Marché e deixem-me em paz com meus quadros!
IV
Segunda-feira, 03 de março. Lá estava ele na galeria de novo. Desta vez, não trouxe nos bolsos nem tintas nem pincéis. Apenas um paninho encharcado em removedor, para apagar sua assinatura da tela.
Esta é uma obra de ficção
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Imagem: “Vernon Terraço” – Pierre Bonnard
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