CARTAS A UM JOVEM ROMANCISTA – de Mario Vargas Llosa

Data de leitura:                       10-07-2024 a 14-07-2024                             Nome: Luísa FRESTA

Ficha de leitura

Título:                                      CARTAS A UM JOVEM ROMANCISTA

Autor:                                       Mario Vargas Llosa[1]

Editora:                                    PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE ©

Coleção/ Edição:                    –

Ano de publicação:                 2000

Género literário:                      Epistolar/ Didático/ Ensaio

Tradução:                                Maria do Carmo Abreu

Número de páginas:               116

 

Resumo: Apenas algumas notas esparsas para vos dar conta do meu encantamento com esta obra de Vargas Llosa, contista e romancista que admiro desde a adolescência. O seu nome evoca em mim a memória de A Tia Júlia e o Escrevedor, lido há várias décadas, a história de um jovem aspirante a escritor, Varguitas, apaixonado por uma tia mais velha: um romance interdito com contornos autobiográficos, creio, escrito magistralmente.

A presente obra apresenta-se como um conjunto de cartas a um jovem romancista: o título é, aliás, bastante explícito. Ignoro se serão cartas reais, pois poderia dar-se o caso de se tratar de aulas escritas, uma espécie de guia baseado no conhecimento e experiência adquirida, fundamentos teórico-práticos acerca da escrita romanesca, sob a forma de epístolas.  Inclino-me mais para esta segunda hipótese. Pela minha parte, vesti a pele desse jovem romancista, sendo que não sou nem uma nem outra coisa. Jovem, já fui e talvez ainda seja episodicamente. Romancista ainda não (e ignoro se virei a sê-lo) mas escrevo narrativas curtas, pelo que os conselhos de Vargas Llosa me são também dirigidos e de grande utilidade.

Nesta obra, pedagogicamente fascinante, e com grande serventia do ponto de vista didático, o autor discorre sobre o Tempo, o Espaço e os ângulos do narrador, entre vários aspetos que considera essenciais para dar segurança a um artífice em início de jornada.

“(…) Embora o tema do tempo, que fascinou tantos pensadores e criadores (Borges, entre estes, que fantasiou muitos textos sobre ele), tenha dado origem a múltiplas teorias, diferentes e divergentes, creio que podemos todos pôr-nos de acordo pelo menos nesta simples distinção: há um tempo cronológico e um tempo psicológico (…)”.

P.56

Analisa detalhadamente e com rara lucidez a vocação literária, a arte de contar histórias e de prender a atenção do leitor, assim como os vários tipos de romance (para ilustrar as suas observações), em diferentes épocas e países, de autores originários de culturas e saberes diferentes, seus contemporâneos ou de outras eras, homens e mulheres, sobretudo europeus e americanos.

O leitor já terá certamente lido muitos deles, outros conhecerá apenas de reputação (ou terá tido contacto com outras obras dos romancistas mencionados). Talvez até já se tenha interrogado sobre eles segundo as mesmas pistas que Vargas Llosa deixa nestas cartas. Lembrei-me de enumerar a maioria dos textos/autores referidos para que nos sirvam de fonte de consulta (ou como simples sugestões de leitura descomprometida). Fi-lo à medida que ia lendo o livro, sem saber então que, no final, o livro contém um índice onomástico e de obras (o leitor poderá consultar o que lhe parecer mais prático). Já se sabe que, para um romancista, estudante ou investigador, o livro arrisca-se a ser objeto de análise mais aprofundada, depois de uma primeira leitura lúdica.

Porém, ainda é possível deliciarmo-nos com um romance que valha a pena (são inúmeros, felizmente, ao longo dos séculos) sem outra pretensão que a de vivermos uma história que não é nossa, com pessoas das quais nos tornaremos íntimas durante algum tempo, experimentarmos aventuras indescritíveis e ampliarmos o nosso pequeno mundo rasgando fronteiras das quais desconhecíamos a existência.

“(…) a Inquisição espanhola desconfiou das ficções, submetendo-as a rigorosa censura e chegou ao extremo de as proibir em todas as colónias americanas durante 300 anos (…)”.

P.14

Vargas Llosa levanta questões que nos são familiares, outras nem tanto. Muitas são assuntos que nunca me tinham preocupado até ao momento de lê-lo. Limitava-me a usufruir da narrativa, descontraidamente. Mas creio que nunca mais o futuro romancista ou estreante nestas lides lerá um romance com o mesmo desprendimento. Há o ler, o mastigar e o digerir, e é esse labor intenso que o autor de Cartas a um jovem romancista faz por nós e connosco, com brio e método, pois trata-se também de um eminente académico, com larga experiência de ensino.

Parece-me evidente que muitas das técnicas e astúcias desconstruídas nestas cartas (são 12, ao todo), cada vez mais pormenorizadas e pontualmente difíceis de descodificar, são tanto mais eficazes quanto invisíveis. Ou seja, nos bons romances, nas narrativas de exceção, que marcam os leitores para a vida, muitas das técnicas e estruturas são realmente usadas, mas de forma tão subtil que não costumam ser percebidas a não ser pelos estudiosos, pelos arqueólogos da palavra. Por vezes nem os próprios romancistas se apercebem dos caminhos sinuosos que a narrativa segue, das rasteiras, dos saltos, dos golpes de génio, das fragilidades, das alterações, dos ciclos narrativos, das mudanças e de todas as outras faces ocultas que Vargas Llosa tão bem enumera, ilustra e descreve.

“(…) parece-me importantíssimo deixar bem claro que a crítica por si só, mesmo nos casos em que é mais rigorosa e acertada, não consegue esgotar o fenómeno da criação, explicá-lo na sua totalidade (…)”.

P.116

No mais, estas cartas (ou aulas magistrais) explicam-se por si só; nada como lê-las devagar e tentar extrair o máximo delas. Depois, quando o leitor – jovem romancista – se esquecer de tudo o que leu neste livro (creio que o próprio autor o diz, de alguma maneira) estará mais perto de escrever bons romances, persuasivos e coerentes, genuínos e bem estruturados. O importante é começar.

Obras mencionadas[2] Autores mencionados[3] A propósito dos seguintes conceitos: (no livro de Vargas Llosa)
A trama celeste Adolfo Bioy Casares Tempos paralelos
O Reino Deste Mundo Alejo Carpentier  
Regresso à semente Alejo Carpentier  
  Balzac  
  Borges  
  Calvino  
  Camus  
Aura Carlos Fuentes Narrado na segunda pessoa gramatical
D.Quixote Cervantes  
Rayuela Cortázar  
  Daniel Dafoe  
  Dickens  
  Dos Passos  
  Edgar Allan Poe  
Bandeiras sobre o Pó Faulkner  
Enquanto Agonizo Faulkner Mudanças espaciais
Santuário Faulkner Dado escondido
Palmeiras Selvagens Faulkner Vasos comunicantes
Madame Bovary Flaubert Os dois primeiros romances modernos
A Educação Sentimental Flaubert Os dois primeiros romances modernos
Cem Anos de Solidão García Márquez  
O Amor Nos Tempos De Cólera García Márquez  
Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa  
O Tambor Günter Grass  
The time machine H.G.Wells  
O Velho e o Mar Hemingway  
Fiesta – O Sol Também Brilha Hemingway  
Calafrio Henry James  
O Lobo da Estepe Herman Hesse Mudança do mundo realista para o mundo fantástico
As Vinhas da Ira John Steinbeck  
Ulisses Joyce  
A Vida Breve Juan Carlos Onetti Caixa chinesa
Juan sin tierra Juan Goytisolo Narrado na segunda pessoa gramatical
Pedro Páramo Juan Rulfo  
A Metamorfose Kafka  
Tristram Shandy Laurence Sterne Estados pré-natais
  Lezama Lima  
  Malraux  
Galíndez Manuel Vázquez Montalbán  
Los cachorros Mario Vargas Llosa Narrador-personagem coletivo
Moby Dick Melville  
L’emploi du temps Michel Butor Narrado na segunda pessoa gramatical
Cinco horas con Mario Miguel Delibes Narrado na segunda pessoa gramatical
  Pierre de Mandriargues  
  Pío Baroja  
Em Busca do Tempo Perdido Proust  
O Ciúme Robbe-Grillet “O novo romance”
  Robert Louis Stevenson  
Citadelle Saint-Exupéry  
  Samuel Becket  
  Sartre  
Todos os Homens São Mortais Simone de Beauvoir Abolição do tempo
  Stendhal  
  Thackeray  
Do Tempo e o Rio Thomas Wolfe  
O Anjo Que Nos Olha Thomas Wolfe  
Os Miseráveis Victor Hugo  
Orlando Virgínia Woolf  
  Voltaire  
Junkie William Burroughs  

[1] Biografia do autor: “PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2010/ Mario Vargas Llosa nasceu no Peru, em março de 1936. Em 1959 abandona o seu país e, graças a uma bolsa, ingressa na Universidade Complutense de Madrid, onde faz provas de doutoramento, fixando-se de seguida em Paris. Sempre próximo da penúria, foi locutor de rádio, jornalista e professor de espanhol — tinha apenas publicado um primeiro livro de contos. Regressa ao Peru em 1964 e casa no ano seguinte com a sua prima Patricia Llosa, com quem parte para a Europa em 1967, tendo vivido até 1974 na Grécia, em Paris, Londres e Barcelona — após o que regressa novamente ao Peru. O seu afastamento em relação ao regime de Havana (que visitara pela primeira vez em 1965) irá marcar toda a sua biografia política e literária a partir de 1971. Em Lima pode, finalmente, dedicar-se em exclusivo à literatura e ao jornalismo, nunca abandonando a intervenção política que o levou, em 1990, a aceitar candidatar-se à Presidência da República – depois disso fixou-se em Londres e, mais recentemente, entre Paris e Madrid, escrevendo romances, ensaios literários, peças jornalísticas e percorrendo o mundo como professor visitante em várias universidades. Entre os muitos prémios que recebeu contam-se o Rómulo Gallegos (1967), o Príncipe das Astúrias (1986) ou o Cervantes (1994). Foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura em 2010.”

Fonte:  https://www.wook.pt/autor/mario-vargas-llosa/15013

[2] O título da obra aparece, neste artigo, na língua em que é citado.

[3] O nome do romancista surge ora com, ora sem apelido, tal como vem referido nesta obra.

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Sobre Luisa Fresta 39 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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