Inaugurado a 6 de julho de 2019, um dia depois do aniversário da independência do país, o Centro Cultural de Cabo Verde (CCCV), situado na rua de São Bento, em Lisboa, tem sido palco de numerosas atividades de âmbito cultural que incluem concertos, exposições de artes plásticas, tertúlias e lançamentos de livros.
Tive o prazer de estar presente no final de tarde em que ocorreu a inauguração e de assistir ao ambiente caloroso e intimista que se gerou enquanto subíamos lentamente a rua, desde a Assembleia da República, cantando mornas, junto com o Coro Sinfónico Lisboa Cantat. Esse momento foi chamado serenata, um pouco ao ritmo e com o espírito das mais compenetradas procissões.
Nessa noite vários aclamados intérpretes de Cabo Verde tomaram conta dos microfones e encantaram o público que os aguardava com impaciência. Por outro lado, inúmeras personalidades, de Cabo Verde e de Portugal, tomaram a palavra, como era de se esperar num momento com tamanha solenidade.
Muitos amigos e conhecidos participaram nesta empolgante aventura, cabo-verdianos, portugueses e centenas de cidadãos de outras proveniências que apreciam e valorizam a cultura daquele país. Cabo Verde tem motivos para se orgulhar das suas diferentes manifestações culturais das quais a música é um expoente máximo. Confidenciava-me um dia um amigo que o seu maior desgosto era não saber tocar um instrumento musical, nem sequer dedilhar um violão: escusado será dizer que, não sendo brasileiro, só podia ser cabo-verdiano! Já tive oportunidade de rabiscar umas linhas sobre a importância da música para os cabo-verdianos e por conseguinte para todos os que partilhamos desse amor pelas suas distintas expressões musicais, nomeadamente a morna, que foi recentemente elevada à categoria de Património Imaterial da Humanidade (a 11 de dezembro de 2019). Quando a vertente rítmica herdada da “mãe” continental africana se une às melodias trazidas também da Europa, geram-se sonoridades de beleza ímpar que lembram o mar, a saudade, o amor, o sofrimento, a distância, a insularidade e a dor da emigração. Não é de admirar que a morna tenha tantos seguidores ou adeptos. Numa palavra: amantes.
Mais recentemente, numa segunda passagem pelo CCCV, pude observar com mais atenção, sala por sala, toda a oferta cultural, o espaço e a envolvência. “Vou gostar muito e respirar bem o ambiente. Preciso de me impregnar de coisas bonitas. Aquela procissão/ serenata da inauguração foi muito emocionante”, confidenciei na véspera à minha anfitriã, Ângela Barbosa (uma das pessoas que trabalha no Centro, para além de um coordenador e um gestor), que não se poupou a esforços para me proporcionar informações tão empolgantes como elucidativas sobre as exposições em curso e a vocação perene do Centro. Pelo que me explicou, é o primeiro Centro Cultural do Estado de Cabo Verde (e também o primeiro de um PALOP) na Europa.
Certamente que tal facto deve-se ao sonho do Embaixador Eurico Monteiro e ao trabalho árduo da sua equipa, à persistência e determinação de Cabo Verde (e à capacidade de pôr em prática essa visão), bem como às parcerias locais eficazes e fluidas. E igualmente às boas relações, institucionais e de amizade, com o país de acolhimento. Não preciso de ter acesso a informações privilegiadas para concluir que uma obra de tal vulto e beleza só se consegue com a confluência dos esforços de ambos os lados.
Fechando este pequeno parêntesis direi apenas que a visita me encantou a vários níveis: o colorido mural exterior com uma pintura retratando batucadeiras é um cartão-de-visita gigante que abre o apetite para o que nos aguarda no interior. O piso de parquet de madeira envernizada contrasta com o branco das paredes e os estores enroláveis de lona nos dois extremos do auditório, funcional e luminoso. Ainda permanece nas paredes uma exposição de cantores e autores de mornas onde encontramos a ilustre Celina Pereira entre os seus pares, de vários estilos e gerações, todos de craveira internacional. A mesma Celina Pereira que se bateu afincadamente pela candidatura da morna (que viria a ser coroada de êxito), desde os seus primórdios. Não me é possível citar de memória os nomes dos incontáveis artistas inscritos nas paredes alvas; mas sei que aí encontramos muitos dos que conhecemos e aprendemos a admirar, gente que há muito faz parte das nossas vidas. Tendo em conta a diversidade e qualidade dos músicos de Cabo-Verde seria sempre possível acrescentar outros, mas as paredes da própria Assembleia da República não chegariam para nomeá-los a todos!
Noutro piso encontramos uma biblioteca muito original e um cantinho de merchandising; e ainda uma belíssima exposição de artes plásticas com quadros de Kiki Lima e de António Firmino. O primeiro encanta-nos sempre pela cor e pelo movimento, pela intensidade da luz que ilumina as cenas do quotidiano das gentes comuns, da dança e da música. O segundo pelo pormenor e pelo realismo, pela enumeração exaustiva dos retratados. Um e outro artista nos contam as cores e os sons de Cabo Verde através das telas, que convivem harmoniosamente num espaço amplo. Há ainda uma sala onde se encontram expostos variadíssimos instrumentos de cordas usados na música cabo-verdiana, da autoria de Aniceto Gomes Coutinho, com especial destaque para o cavaquinho.
O CCCV não tem o exclusivo dos eventos culturais, que ocorrem igualmente em associações um pouco por todo o país, assim como em locais pontualmente cedidos; contudo, este é o espaço vocacionado especificamente para esse tipo de eventos, com as condições logísticas necessárias de maneira a garantir o conforto e a imersão num ambiente caloroso, tropical e nostálgico. A decoração foi pensada e executada com o máximo cuidado e rigor, e talvez o ponto mais visível e emocionante dessa fusão entre estética e delicadeza seja a cadeira de baloiço onde Eugénio Tavares partiu para outra dimensão. Quase podemos vê-lo escrevendo um dos seus poemas.
O Centro merece, com certeza, várias visitas, mesmo no intervalo dos eventos mais concorridos e mediáticos, para se avaliar com justeza e minúcia todo o espólio dos artistas, cedido ou emprestado por familiares, recriando, na imaginação, o ambiente em que eles viveram e vivem assim como a sua obra, que admiramos e nos adoça a existência mercê do infinito poder apaziguador da arte.
Luisa Fresta
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