Conto 1

CONTO 1

Por José Pais de Carvalho*

O homem que caminhara nas areias do deserto sabia que o calor e o frio podê-lo-iam afligir, qualquer animal podê-lo-ia ferir, ainda que o seu desígnio fosse a eternidade. No horizonte, a montanha fascinara-o. Não vira o sol nascer nas suas costas, mas observara os matizes ondulantes das dunas ganharem consistência. Deu-se conta também, com a manhã, do frescor das sombras, descendo pelas vertentes, em seus pés. Dos raros arbustos e capim, viu os lagartos e desviou-se dos aglomerados de pedras imaginando evitar as cobras. Nos derradeiros anos preparara-se para aceitar a insegurança e a desgraça com a profunda convicção de que nem as circunstâncias nem as situações adversas o impediriam de existir.
Tão-pouco o sol se imiscuíra na sua decisão. Ao meio-dia olhou uma bola de fogo, e quando desviou a atenção, nada viu além de um rasto circular, incandescente. E sobressaltou-se: a memória de um encontro era a diminuta face visível da consciência não comum; se lhe perguntassem por um nome ou por uma palavra proferida, não poderia responder, se bem que da resposta dependesse a sua vida.
As sombras desciam pelo vale no fim da tarde e o sol permanecera o tempo de enaltecer a cordilheira cujos tons ocres o homem avistara. Extenuado, sentara-se na saliência do rochedo e do cume avistara o ondulado serpentear do terreno acidentado, desenhado por ventos vindos de diferentes direcções. Mas o pico majestoso à sua frente é que o atraía. Num ímpeto olhara para trás assustado, não bastando os pensamentos desobedecerem-lhe. Um lapso preenchera um diálogo pressentido pela memória. A voz fôra a mesma que lhe dissera, estando sozinho, vai àquela rocha, não se perde tempo.
O crepúsculo, em determinados lugares, sugeria uma revelação. Entregar-se a tal propósito seria a árdua tarefa da vontade, a de testemunhar o imperscrutável e silente mistério. Os olhos descreveram, então, um círculo ao redor do globo ocular, no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, recuperando a sobriedade – e o silêncio foi o silêncio interior, quando parou o diálogo interno.
Atempadamente tivera oportunidade de olhar as sombras propícias deslocarem-se na encosta. Talvez no exacto momento em que o último raio de sol tocou o ponto cintilante da cordilheira distante, se dera o impulso da Terra, e viveu no corpo a pressão da velocidade telúrica. Não sabia ainda, nem poderia recordar-se de em outra época ter estado naquele local, e do que testemunhara, malgrado a associação que fizera, a da ancestralidade do inferno, cavernoso, húmido, de ornados vermelho-púrpura, devolver-lhe a possibilidade de suportar o som sísmico que não ouvira, mas sentira em todo o ser.
Assombrado, deixara-se arrastar por inaudível força propulsora. E percebera que a pressão se devia ao seu próprio movimento. Perdera a visão contígua. Letárgico, deslumbrara-se com a alvura em redor, só idêntica à sensação de segurança e bem-estar usufruída. Numa trajectória ascendente, aproximara-se da abóboda alva, e preenchia-se, numa suave e clarividente percepção de tudo abarcar sem que a consciência esboçasse forma e pensamento, sem saber que essa mesma consciência se dissolvera como o vento e ele, o homem, alertado, não era nada!
Como uma semente de serradela, sentira-se flutuar. Uma leve brisa descia sobre a saliência rochosa, firme e decidida. Prostrado no chão, caíra exausto, recobrando a consciência comum. A noite abraçara a derradeira réstia de luz no firmamento, e o tempo fôra a modalidade que lhe tomara toda a energia disponível para enxergar o ponto luminescente, quando este se espraiou em campos idênticos no interior do homem. Seria cedo para ter a percepção do que acontecera, mas fôra o modo como entrara em contacto com a consciência da Terra, que a tornara perceptível. Lá fora, as estrelas permaneceriam como antes.

José Pais de Carvalho

Escritor e Psicoterapeuta Transpessoal
Lisboa, Portugal

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