
Título: CORAÇÃO DAS TREVAS [1]
Autor: Joseph Conrad[2]
Editora: sistema solar ©
Coleção/ Edição:
Ano de publicação: 2024
Género literário: Novela
Tradução e apresentação: Aníbal Fernandes
Revisão: Diogo Ferreira
Número de páginas: 154
Resumo: Coração das Trevas [3] (novela de 1902) é um livro difícil e complexo, que me levou algum tempo a ler e digerir. Tal não invalida que seja fascinante, mas apenas que exige um esforço acrescido de leitura e entendimento. Optei por deixar o livro falar de si mesmo, destacando alguns fragmentos neste texto. Lembro que a obra inspirou parte do argumento de Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla; aliás, a foto da capa desta edição é uma imagem de Marlon Brando, no papel de Kurtz.
A apresentação de Aníbal Fernandes ajuda em muito a contextualizar a obra, sublinhando também pormenores substanciais da vida do autor, muito mais do que trivialidades: Joseph Conrad aprendeu o inglês com 23 anos, quando passou a integrar a marinha inglesa e se fixou na Inglaterra; mas muito rapidamente conseguiu manejar o idioma com mestria, a ponto de se tornar um exímio escritor. O inglês seria a terceira língua do autor.
Quanto à novela, inicialmente com pinceladas de mistério, a partir de dada altura passa a enfatizar sobretudo uma crítica à brutalidade do colonialismo, destacando igualmente alguns aspetos perversos da exploração e desvio fraudulento recorrente dos recursos naturais, como o marfim.
“(…) Mas aquela gente não tinha, na verdade, grande préstimo. Não era colonizadora. Suponho que o seu império só espremia, e mais nada. Mas era conquistadora, e para isso há que ter força bruta…uma coisa que não devemos gabar quando a temos, porque a nossa força não passa de mero acidente e resulta da fraqueza alheia (…)
P.21
Parece notar-se um paralelismo entre o avanço através do rio Congo (simultaneamente cenário e personagem, como enunciado na apresentação) e o tom crescente da barbárie. Esta sincronia permite abordar as dolorosas condições em que sobreviviam os autóctones, reduzidos na prática à condição de escravos, com cenas de grande crueldade, selvajaria e violência, sem branquear a ação de nenhuma personagem nem silenciar ou minimizar o potencial de maldade inerente ao ser humano, não apenas em nome do instinto de sobrevivência. Talvez a narrativa tenha algo de autobiográfico uma vez que o próprio autor conhecia bem a região, fez a travessia do rio Congo e era um homem do mar, antes de se dedicar à Literatura.
“(…)Trazidos de todos os recantos da costa e a coberto da maior legalidade dos contratos a prazo, perdidos num meio adverso e alimentados de forma estranha ao seu regime, caíam doentes e faziam-se inúteis, altura em que eram autorizados a procurar de rastos o repouso (…)”.
P.41
À medida que vamos palmilhando as páginas, veremos que pouco restará do entusiasmo inicial do jovem que consegue emprego num barco através da influência familiar para substituir um antecessor precocemente morto. Às duras rotinas do mar numa velha embarcação seguem-se a desilusão e a perceção consistente de perigo constante.
Num ambiente climático hostil para o homem branco, muitos eram os desafios que se apresentavam diariamente: as sezões e outras doenças tropicais, a natureza, por vezes agreste e exuberante, a intriga política, a cultura do medo, as rivalidades e o secretismo do mundo empresarial. E até o choque de personalidades, pontos de vista e idiossincrasias. Nesta novela, cuja tradução e revisão refletem a qualidade da obra, julgo que o mais marcante é a maneira como se desumanizam seres humanos, que não eram considerados nem tratados como tal à época, no contexto que serve de pano de fundo à narrativa. Fica bastante explícita para o leitor a ausência total de compaixão, empatia ou respeito. As relações eram marcadas pela violência, desprezo e desconfiança. Por outro lado, Kurtz é uma figura enigmática que muda de campo ao longo da narrativa. E Marlow, o narrador…
“(…) Na obra de Conrad, quem mais o enfrenta é Marlow, seu narrador privilegiado (centro de tantas obras suas, uma delas este Coração das Trevas) (…)”
P.10 (Apresentação)
Muito excecionalmente alguns homens conseguiam transcender o seu meio de origem e a sua condição, para se humanizarem e aproximarem de outros seus (dis)semelhantes.
“(…) É esta a razão de eu afirmar que Kurtz era um homem notável. Tinha qualquer coisa para dizer. E disse-a. Desde o momento em que eu próprio dei uma espreitadela para além do limiar, compreendo melhor o que significava o seu olhar parado, incapaz de ver a chama da vela, mas suficientemente agudo para devassar todos os corações que batem nas trevas.(…)”
P.140
“(…) ;ainda hoje não sou capaz de dizer qual era a profissão de Kurtz, se acaso teve alguma… e qual era o maior dos seus talentos. Tomei-o por um pintor que escrevia para os jornais, ou antes, por um jornalista que sabia pintar…(…)”
P.144
Entretanto toda a linguagem da obra espelha uma profunda ironia, nos diálogos, nas descrições.
“(…)’O senhor conhecia-o bem’, murmurou depois de um instante de silêncio triste.
─ Naquelas terras a intimidade é rápida ─ respondi. ─ Conheci-o tão bem como um homem pode conhecer outro.’(…)”
P.148
Não é de todo fácil seguir o enredo e não perder o fio à meada, por isso o leitor deverá dedicar bastante atenção e optar por uma leitura quiçá mais lenta e qualitativa. Não se vai arrepender. Coração das Trevas é aquele que pulsa dentro e fora de nós, um coração que é o próprio cerne da opaca escuridão da noite.
[1] Heart of Darkness, no original.
[2] Biografia do autor: “Joseph Conrad, aliás Józef Teodor Konrad Korzeniowski, nasce na Ucrânia em 1857, em plena autocracia dos Czars. Filho de um casal polaco no exílio, fica órfão muito cedo. É criado e educado pelo tio, o responsável por aquela que seria a paixão central da sua vida: o mar. Viaja para Marselha em 1874, prestando serviço a bordo de navios mercantes franceses antes de finalmente se juntar à tripulação de um navio inglês, no ano de 1878. Em 1886 obtém nacionalidade britânica e o Certificado de Mestre no Serviço Mercantil Britânico. Oito anos mais tarde abandona o mar para se dedicar à escrita, publicando o seu primeiro romance – ‘Almayer’s Folly’, em 1895. Continua a escrever e a publicar até à data da sua morte em 1924. Conrad é autor, entre outras obras, de Lord Jim (1900), Nostromo (1904), The Secret Agent (1907), Under Western Eyes (1911), Heart of Darkness, Coração das Trevas, 1902). É hoje considerado um dos maiores escritores de ficção em inglês, a sua terceira língua.”
Fonte: https://www.wook.pt/autor/joseph-conrad/3047
[3] Também publicado, noutras edições, com o nome O Coração das Trevas.
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