Corpo queimado

 

Na garganta seca. O fogo queimava. A televisão queimava. O ar. Faltava. Faltavam lágrimas. Só. Homem grande. Forte. Olhos presos nas chamas. Na morte. No inferno. Pensava que não podia. Chorar. Ser forte era a regra. Aprendera cedo. Firme. Duro. Homem! Como dizia o pai. “Seja homem!”
Mas não queria. Como podia ser homem? Como podia acreditar na humanidade? O corpo ardia. Por dentro e por fora. O movimento na rua continuava. A voz do filho no quarto. A esposa lendo no quarto. E ele ali. Ele. O fogo. A TV. E a morte.
Corpos queimados. Verde morrendo em vermelho-inferno. Animais carbonizados. Fumaça invadindo todos os narizes e olhos e mentes do mundo.
O corpo dele ardia. Febre que o consumia. No mundo um vírus devorava tudo e todos. Mas não era o covid-19 não… era o vírus humano. Um vírus que infectava, apodrecia e destruía qualquer tipo de vida. A tudo resumia em valor, em número, em finança.
A madeira das árvores ardia. A carne dos animais ardia. A vegetação ardia. Mas o que importava era o lucro. Uma “boiada” deveria passar. Metafórica ou não. O lucro tinha que passar. Atravessar os corpos já frágeis de uma natureza cambiante.
O fogo queimava tudo. Inclusive os discursos. O verbo incandescente da mentira e do descaso construía narrativas ridículas para justificar o injustificável. O cinza escaldante pintando o que outrora fora verde. O gosto e o cheiro da carne queimada impregnando o ar quente. Sufocado.
Queria desligar. Chutar a TV. Recusar. Tinha que ser mentira. Tinha que ser! Mas não era. O outro canal. E o outro. Na Internet. Pelo mundo. Todos informando inconformados o descaso e a morte.
O rosto vermelho. O fogo, mesmo na tela da tV, aquecia as faces do homem. Ele suava. Suava muito. Seria vergonha? Ele pensava. Seria vergonha?
Vergonha de saber que pertencia a uma raça tão mesquinha e cruel?
Desligou o fogo. Na tv. Levantou o corpo em brasas. A porta. A rua. O ar. Tudo ainda normal.
No lado o jardim verde. Do outro algumas ervas crescendo ao lado de uma calçada. Flores em vasos. A árvore que plantara quando tinha cinco anos. Na rua o mundo parecia o mesmo. Um pardal voou perto. Rasante. Ao longe um cachorro latiu. Barulho de carro. De gente caminhando e conversando. Apesar do covid-19. Tudo normal.
Mas não parava de suar. Queimava por dentro.
Entrou. Geladeira. Copo de água. Garganta. Inundação. Mais água. Ainda mais. Quase afogado. Tossiu.
Olhou pela porta ainda aberta. Seria mentira?
Como seria morrer queimado? Gritando? Sem ter o que fazer, sem ter aonde ir?
Sentou. Rosto ainda suando. Queimando. O cérebro humano incendiado.
Num grito rasgou a camisa. Arrancou as calças. Tudo queimava. Jogou-se em desespero pelo portão. Corpo incendiando por dentro. A humanidade em fogo. Berro enlouquecido pela rua.
Encontraram-no encolhido, olhos arregalados, corpo endurecido como se estivesse carbonizado. Não estava. Vivo. Queimado estava apenas o cérebro. A alma.
Estava queimado por dentro. Uma vergonha tão grande de ser humano o consumia.
O fogo que devastava a Amazônia e o Pantanal queimava também a humanidade do homem contorcido. Enlouquecido.
Uma vergonha calcinante de ser homem.


Sobre Ronie Von Rosa Martins 27 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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