(Coloco abaixo uma interessante matéria que saiu no Jovem Nerd, que muito interessa a todos os leitores do Portal Entrementes – Elizabeth de Souza)
Criptomoedas e o fim do mundo
Bitcoin e afins gastam mais energia elétrica do que países inteiros — e isso é alarmante
Por Daniel John Furuno
8 de outubro de 2021 às 14h56
Em 1974, dois cientistas publicaram um artigo sobre o impacto do clorofluorcarbono (CFC) na atmosfera terrestre. Esse tipo de gás, antes presente em quantidades irrisórias, vinha sendo despejado às toneladas no ar. Isso porque, desde a década de 1920, ele era a nova força motriz do segmento da refrigeração, por ser uma alternativa barata e segura a outros gases, tóxicos e potencialmente explosivos. O CFC, por meio do ar-condicionado, iniciou uma revolução ao possibilitar que estabelecimentos comerciais, residências e veículos mantivessem uma temperatura agradável em seus interiores em qualquer época do ano.
Só que o estudo mencionado demonstrou que o gás (tão popular que havia sido adotado até como propelente em latas de spray) se acumulava na atmosfera, onde vinha corroendo a camada de ozônio, responsável por filtrar os raios ultravioletas do sol. O aumento dessa radiação poderia levar ao derretimento das calotas polares e a consequências catastróficas. Para piorar, outro cientista detectou que a tal camada já apresentava um buraco, bem na região da Antártida.
A indústria, é claro, não estava disposta a deixar algo tão banal como a ciência interferir em seus negócios. Com lobby pesado (as gigantes General Motors e DuPont estavam por trás do desenvolvimento e produção do gás), ela lutou o quanto pôde para retardar as medidas restritivas. Até que a situação ficou insustentável: em 1989, mais de uma década depois da publicação do artigo, entrou em vigor o Protocolo de Montreal, um tratado internacional sem precedentes, que conseguiu controlar a emissão de CFC.
Mas o dinheiro encontra um meio. Os fabricantes de refrigeradores e ar-condicionado, em vez de atacar o xis da questão, apenas taparam o sol com a peneira: trocaram o gás proibido por um similar, o hidrofluorcarbono. O HFC não interfere na camada de ozônio, porém, mais tarde se descobriu, é um dos causadores do efeito estufa, que resulta em mudança climática e aquecimento global. E lá foram os signatários do Protocolo de Montreal tentar resolver o problema: em 2016, mais de duas décadas depois, assinaram a Emenda de Kigali, que acrescenta o HFC à lista de substâncias controladas.
Inovações são empolgantes; tanto que, muitas vezes, nos deixam cegos (ou complacentes com relação) aos potenciais riscos que trazem consigo. Quando a ciência soa o alarme, entretanto, é necessário ouvir e agir. E a sirene das criptomoedas está tocando há algum tempo.
Mais do que meras moedas digitais, elas são descentralizadas, ou seja, não são geridas nem reguladas por uma autoridade única, como o Banco Central. Ao invés disso, são administradas coletivamente em uma rede de computadores, por meio da tecnologia conhecida como blockchain.
Em resumo, funciona assim: todas as transações e movimentações das criptomoedas são registradas de modo permanente em um livro digital aberto, o ledger. Os novos dados são agrupados em um bloco (block), que se encaixa no anterior, e assim sucessivamente, formando uma corrente (chain) inalterável. A confiabilidade do ledger é assegurada pela robusta proteção criptográfica e pela constante verificação de sua autenticidade.
O poder computacional de que o sistema necessita vem da própria comunidade de usuários, que disponibiliza suas máquinas. Não se trata de uma atitude desprendida: existe recompensa. Para validar os dados na rede, é preciso resolver uma espécie de quebra-cabeça matemático; em troca, ganha-se a moeda — e a “extração” de unidades monetárias dessa maneira é chamada de mineração.
Para surpresa de ninguém, o modelo incentiva o surgimento de mineradores profissionais, que montam estruturas com uma infinidade de computadores dedicados, trabalhando 24 horas por dia na resolução dos tais quebra-cabeças, por sua vez, programados para se tornarem cada vez mais complexos.
Tudo isso, é claro, exige um bocado de eletricidade, cuja produção em nível mundial ainda se baseia majoritariamente (mais de 60% em 2019, segundo a International Energy Agency) na queima de combustíveis fósseis (carvão, óleo e gás natural). Esse processo é um dos principais responsáveis pela emissão de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, o grande vilão do efeito estufa.
A fim de monitorar a situação, a Universidade de Cambridge tem publicado o índice de energia elétrica demandada pela mineração do Bitcoin, escolhido por ser, de longe, a maior das criptomoedas, com valor de mercado de mais de US$ 856 bilhões (somadas, as nove outras similares em um recente Top 10 da Forbes não batem tal cifra).
Atualizado diariamente, o índice chegou a apontar em um momento de pico, em maio deste ano, nada menos que 131,15 TWh (terawatts hora) ao ano. Para entender o que esse número significa, vamos ver como é calculado.
Os pesquisadores estimam o piso e o teto de consumo: no primeiro caso, avaliam um cenário hipotético em que todos os mineradores utilizem somente os equipamentos com maior eficiência energética; no segundo, apenas os menos eficientes. A partir daí, tiram a média, com uma combinação mais realista de aparelhos de maior e menor eficiência. Então, extrapolam os números, considerando que essa média se mantenha ao longo de um ano, para chegar, enfim, à taxa de terawatts consumidos (teoricamente) por hora.
Mas quanta eletricidade esses 131,15 TWh representam? Bem, é um quinto da taxa de consumo do Brasil em 2019 (605,73 TWh). Ou, colocando de outra maneira: se os mineradores de Bitcoin constituíssem um país, ele gastaria mais energia elétrica do que os Emirados Árabes Unidos (130,03 TWh em 2019) e a Holanda (124,47 TWh em 2020), por exemplo.
É verdade que, em maio, o governo da China — que até então concentrava mais da metade do mercado de mineração de criptomoedas — começou a decretar o banimento da atividade em várias de suas províncias. A ação teve impacto imediato, com reflexos no consumo de energia. Porém, mesmo na maior queda registrada, no início de julho, o índice anotado pela Cambridge (60 TWh) foi superior ao de Portugal (52,01 TWh) e Peru (51,88 TWh) em 2020.
Ademais, não significa que os mineradores desistiram. Grande parte simplesmente se transferiu para outros países, como Estados Unidos e Cazaquistão. Com isso, o nível de consumo voltou a subir rapidamente rumo ao patamar anterior — até o fechamento desta matéria, já havia chegado a 104,96 TWh.
De novo, para surpresa de ninguém, os entusiastas das criptomoedas se esforçam para relativizar os dados. Em um artigo com o nada modesto título “A última palavra em consumo de energia do Bitcoin”, Nic Carter, executivo do setor, se concentra em dois argumentos, ambos usando a China como exemplo.
O primeiro é que, no país asiático, grande parte da energia consumida pela moeda viria do excedente de usinas hidrelétricas, que seria desperdiçado caso não fosse utilizado. Ele se apoia na observação de que Sichuan, a segunda província chinesa com mais mineração, possui hidrelétricas com capacidade de produzir o dobro de eletricidade que sua rede pode suportar.
No entanto, o executivo deixa de mencionar que esse é um fenômeno sazonal: a geração em excesso só ocorre no período de chuvas, que vai de abril a outubro. Na outra metade do ano, durante a seca, o que se observa é a migração dos mineradores para outras regiões, onde a energia (de fontes não necessariamente limpas) passa a ser mais barata.
O segundo argumento de Carter é que não seria “apropriado” associar a pegada de carbono da China (ou seja, a quantidade de CO2 que ela lança na atmosfera; o país é o líder nesse indesejável ranking) à da mineração de Bitcoin, já que as fontes de energia desta podem ser “relativamente verdes”, e portanto a extrapolação seria “ingênua”.
Acontece que o raciocínio funciona nos dois sentidos: é “apropriado” considerar que a emissão de carbono das criptomoedas não é alarmante só porque, durante metade do ano, parte dos mineradores na China consome o que sobra nas hidrelétricas? É “apropriado” afirmar categoricamente, como o executivo faz, que “o Bitcoin busca energia que, de outro modo, seria desperdiçada” apenas com base nessa extrapolação?
Os fatos sugerem que não — basta dar uma olhada nos dois destinos mais populares após o êxodo chinês.
Nos EUA, há uma combinação de fatores que torna o país convidativo para os mineradores: grandes investimentos em infraestrutura feitos nos últimos anos e uma legislação mais favorável em alguns estados (e, em geral, mais estável, com poucas chances de a atividade ser banida do dia para a noite).
E apesar de a oferta de energia de fontes renováveis estar em crescimento no país, de modo que possa cumprir suas ousadas metas na redução de gases que causam efeito estufa, isso não se reflete, obrigatoriamente, no mercado em questão. Um exemplo: a Greenidge Generation Holdings alardeou ser a primeira companhia norte-americana de mineração de criptomoedas com sua própria fonte de eletricidade; a usina que ela comprou, uma planta a carvão desativada, foi reestruturada e colocada novamente em operação, agora movida a gás.
Dentre os combustíveis fósseis, o gás natural é tido como o mais limpo: emite cerca de 300 a 400 gramas de dióxido de carbono a cada kWh gerado, ao passo que as emissões do carvão e do óleo podem ultrapassar 1000 g. Assim, até o começo do século, foi considerado como um possível combustível de transição durante o processo de substituição das fontes mais poluente pelas renováveis.
Segundo Ricardo Baitelo, doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica/USP e coordenador de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).
“No entanto, o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] não recomenda que novas termelétricas a gás sejam instaladas, considerando a infraestrutura empregada e o tempo mínimo de 15 a 20 anos (ou mais) em que estarão em operação. Isso porque, idealmente, as usinas fósseis devem ser descontinuadas entre esta década e a próxima, e os recursos para a geração de eletricidade devem se concentrar integralmente na expansão de energias renováveis.”
Quanto ao Cazaquistão, o preço baixo parece ser o único atrativo, já que, nesse caso, não dá para falar em fontes “relativamente verdes”: quase 89% da matriz elétrica do país se baseia na queima de combustíveis fósseis, sem qualquer sinal de redução significativa. Outro exemplo: um grande centro de mineração foi recentemente construído lá pela Enegix, empresa que aluga suas instalações para terceiros; é alimentado por uma das maiores usinas movidas a carvão no mundo.
Sem juízo de valor: você pode considerar imoral uma moeda especulativa ter tamanho impacto no meio ambiente e concordar com uma professora da universidade de Southampton, para quem o Bitcoin “deveria morrer pelo bem comum do planeta e ser substituído por um novo modelo. Ele consome mais energia do que um país. Todo resto é detalhe.” Ou então pode abraçar a lógica de um economista, que crê que “se as pessoas acham que vale pagar por essa eletricidade, ela não é desperdiçada.”
A verdade é que o segmento das criptomoedas tem uma responsabilidade imensa, proporcional aos recursos que consome. Infelizmente, tal qual ocorreu com a indústria do CFC/HFC, ele pode estar tapando o sol com a peneira em vez de atacar o xis da questão.
Sim, são válidos e importantes quaisquer esforços no sentido de tornar Bitcoin e afins mais sustentáveis — um bom exemplo é o Crypto Climate Accord. Porém, é preciso ter em mente que, considerando seu ciclo de vida completo, nenhuma fonte é totalmente limpa.
Ricardo Baitelo observa:
“No caso das renováveis, ainda que não haja energia envolvida na extração e beneficiamento de combustíveis, bem como na operação das usinas, há energia empregada para a produção de equipamentos, construção de plantas e seu eventual descomissionamento no final.”
Seguindo esse raciocínio, a mera troca da origem da eletricidade não teria o resultado necessário. “Supondo que a energia fosse proveniente de hidrelétricas, o impacto socioambiental envolvido na construção de usinas de grande porte, ou mesmo de pequeno porte, não cumpriria o objetivo de tornar a atividade mais sustentável”, completa o pesquisador.
Além disso, já chegamos a um ponto em que até mesmo as fontes renováveis estão em risco. O aumento na temperatura do planeta ameaça a eficiência das placas fotovoltaicas, que captam energia solar, ao passo que a mudança climática pode acarretar em mudanças no padrão de força e direção dos ventos, prejudicando a geração de energia eólica. Sem falar na irregularidade das chuvas: períodos de seca têm impacto direto no potencial hidrelétrico (como nós, brasileiros, estamos cansados de saber), enquanto temporais e enchentes são capazes de provocar danos estruturais às usinas em si.
Uma solução seria simplesmente diminuir o gasto elétrico das criptomoedas. “Se fosse possível regulamentar a mineração, a eficiência energética [dos equipamentos utilizados] seria o caminho mais sustentável, reduzindo tanto o volume de energia consumida quanto o período de uso, de forma a desonerar o horário de pico de demanda de eletricidade”, sugere Ricardo.
Outra opção seria substituir o atual sistema de validação de dados, em que os usuários competem para resolver os quebra-cabeças antes dos outros (chamado “proof of work”, ou “prova de trabalho”). Em seu lugar, poderia ser adotado um com menos desperdício de energia, como o “proof of stake”, ou “prova de participação”, em que o usuário “investe” certa quantidade de unidades monetárias para fazer a validação.
Algumas moedas já têm apostado nisso. Mas mercados que movimentam cifras bilionárias costumam ser resistentes a mudanças. Somente com a ação da própria comunidade e a pressão da sociedade essa mentalidade será transformada. O problema é que não podemos nos dar ao luxo de esperar mais um par de décadas.
Fonte: https://jovemnerd.com.br/direto-do-bunker/criptomoedas-e-o-fim-do-mundo/
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