Delírios, vertigens e escutas #TBT

Delírios, vertigens e escutas #TBT

para celso de alencar

No início desta era sem igual, um treino perceptivo passou a incorporar as horas lentas do meu calendário.

Tudo começou nos primeiros quarenta dias da quarentena.

Curioso: hoje, após estas mais de cinco centenas de dias, já é possível narrar esse tempo como um passado, uma lembrança, uma lembrança dentro de outra lembrança, como se quiséssemos impor ao fato real o estado de apenas lembrança, um passado, como se disséssemos ironicamente: lembra? Naquele tempo ficávamos horas a fio nas janelas, naquele tempo sentíamos um horror enorme ao ouvir sobre as inúmeras mortes – hoje denominadas óbitos, infinitamente multiplicados, naquele tempo a vacina era uma utopia.

Mas o dado é real e o fato concreto: choramos sem pausa nossos mortos, os do nosso convívio e apreço, e todos, choramos todos os mortos.

Desde aquele tempo, até hoje.

Ao escrever meu primeiro poema após quarenta dias confinada, descobri um aguçamento da minha percepção: meu olhar e o meu querer desvalido captavam detalhes nunca antes percebidos. Nos primeiros meses de crise sanitária eu morava num flat no centro de São Paulo.

O primeiro poema que fiz na pandemia foi um refluxo imediato de uma noite perversa, claustrofóbica, envolta em vertigens que me legaram como herança um zumbido nos tímpanos que estão me custando exames e mais exames, medicações e cuidados. Este poema regurgitado serve bem para mostrar o aguçamento de que vos falo; assim, cito alguns trechos dele, e de como ele nasceu. Sou uma confessa preguiçosa digital – me auto denomino portadora de dislexia digital: penso tudo mas o que os dedos digitam é um emaranhado incompreensível. Também por isso, não sejam ingênuos, devo admitir, cito aqui a historiazinha destes poemas: basta saber teclar o CTRL C CTRL V e voilà! Mas sou tão ruim de digitar, agravada falha por uso de tarjas pretas contra a insônia que algumas vezes postei em redes famosas como o facebook coisas como prtrlvvvffgrttt em plena madrugada delirante. Por isso sugiro, a título de curiosidade, que visitem meu canal no You tube (10) Beth Brait Alvim – YouTube e meu poema Lucenca, caso queiram degustar para melhor entender a dislexia e o delírio de que vos falo

Quanto ao poema citado acima, ele foi publicado ao lado de um outro de mesma temática, na Revista E do Sesc de julho de 2020. Seguem alguns versos:

NÃO, NÃO QUERO MAIS

O peito salta do alto num sopro de vento
e a queda é leve
como se voar fosse o último desejo
como se morrer fosse apenas concordar com a ideia de que se está morrendo
após 40 dias nesse deserto.

Nada bloqueia essa taquicardia
esse zumbido de elefante asmático
essa falta de oceano.
Perambulam tontas todas as manhãs e tardes as minhas retinas viciadas
no mesmo céu nos idênticos edifícios no mesmo trem.
Já conheço suas labaredas elétricas que calcam o passado e deslizam no delírio atrás
de marias fumaças.
Já conto todas as tábuas e restos e chapas dos casebres aos meus pés.
Já acredito que ouço os tambores do terreiro em frente à favela todas as madrugadas.
Já não sonho, deliro.
(…)

Esse outro, publicado na mesma revista, foi uma mensagem enviada ao poeta Celso de Alencar. Em várias ocasiões Celso de Alencar transforma mensagens e e-mails que lhe envio em poemas. Ele os lê e os vê como poemas, os defende como poemas, põe-lhes um título e, daí, eu gosto.

Em A febre e a mariposa (Ed.Patuá, 2019) todas as Cartas a Gunther Kriegger (exceto a Carta que não escrevi a Gunther Kriegger)  foram e-mails que enviei ao Celso durante a confecção do livro, que ele, ao lado do professor e poeta Paulo Sposati Ortiz, incentivou, organizou, enfim, arrancou de mim, das milhares de folhas datilografadas que eu guardava e de mil outras digitadas,

MELHOR UM POUCO

Um antidepressivo
que insisto em não tomar,
uns meio exercícios de yoga
muito mal feitos,
um poema que ameniza engulhos
e soro fisiológico para enganar a rinite.
Meditação imposta pelo amigo
e o aperto no peito que dribla
uma claustrofalta de ar.
E esquecer que a peregrinação
no deserto custou 40 dias
de negação de tudo, ou seja,
não lembrar do vento, do mar,
do verde que dilata as narinas da cidade aqui ao lado.
Me sinto melhor.

Simples mensagens que outro ser escutou como um poema. E que serviram ao outro, que as recebeu, como poemas.

Uma outra escuta, creio. Uma outra percepção. Nunca antes havia notado tantos detalhes do cenário restrito da minha janela de um flat do centro de São Paulo. E jamais pensaria que uma mensagem tratando de anti depressivos vencidos, yoga mal feita e saudade da cidade onde mora a neta, cheia de árvores, pudesse ser percebida como poema.

Passei a notar o início e o fim dos dias com os sinos da igreja longínqua, do centro de São Paulo.

Aprendi a ouvir gatos invisíveis, e até a vê-los, nos telhados cinza dos prédios e casebres abaixo dos doze andares do minúsculo apartamento.

Numa nesga na ponta esquerda da janela, passei a aguardar o trem pontual, um risco vermelho raro cortando as veias da comunidade do Moinho.

Com a pandemia, a escuta de nós mesmos e do outro e do mundo se impôs obrigatória. No início, até me fazia mal. O confronto não é fácil. Ora, quando sequer o dia seguinte é impensável … Então desenvolvi aversão percebendo coisas pouco usadas ao meu redor, e doei muita, muita coisa, roupas e mais roupas, talheres, panelas, roupa de cama, banho, noventa por cento da minha biblioteca, muita, muita coisa. E cestas básicas. Uma coerência inusitada mas anunciada: claro, com a rebelião interna que me move desde a adolescência por não suportar a injustiça social, tornei -me rapidamente doadora de uma grande associação mundial de voluntários.

Apesar da idade e com certeza por causa dela, minha casa já quase cabe num baú, e esse baú em um carro, o mais barato da praça, onde perambulo, sem teto. Claro, veio a necessidade de revisitar certos clássicos. Um Rimbaud, que me pauta pelo fato de ele necessitar se deslocar, buscar outras terras, cavocar outros sentidos no apenas deixar-se viver. Com Manoel de Barros, virar bicho, meio concha, uma pedra milenar. Piva, sempre, Willer, Celso, porque a loucura deles é a minha. Mulheres, muitas e poucas: Alfonsina, Cecília, Pizarnik, Orozco, Ferraz e mil outras todas pouco mansas.

Hoje, me sinto mais humana, menos exigente comigo mesma. Só poeta.

Como será o depois?

Não sei se devo me importar com isso.

BETH BRAIT ALVIM

Post scriptum: É preciso louvar o que deve ser louvado: sou (já era) admiradora, divulgadora e apoiadora de ações desenvolvidas por duas companhias de teatro com sede no centro degradado de São Paulo que, diária e incansavelmente, desde o início desta era, recebem as populações vulneráveis que povoam a região e lhes distribuem refeições e kits de higiene, orientando milhares de pessoas. Essas companhias, por força da solidariedade, da empatia social e de sua ética, têm mantido vidas, têm protegido indivíduos e famílias abandonadas pelo Estado. São elas Pessoal do Faroeste e Teatro de Conteiner Cia Mungunzá. Fiquem com meu incondicional amor e admiração.

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