Por Eliane de Fátima Camargo
Ei, moça do canto…O que é filosofia?
É cheia de orgulho que digo: – Sou professora de Filosofia e Sociologia. Os cursos mais atacados por governos ditadores. É certo, criticar, ter consciência de classe em momentos tomados por uma política fascista é muito perigoso. Mas, não me deixo sucumbir, sigo sonhando, lutando, levantando a voz.
O ano de 2020 nos deixou marcas profundas. A realidade não deu trégua, bateu forte. Além da pandemia, pudemos observar e sentir na pele os efeitos que um governo desumano pode fazer. A educação, sem dúvidas, foi uma das mais atacadas. Ser educadora neste contexto foi uma luta ainda maior. Para terminar o ano, o governo do Paraná resolveu diminuir a carga horária das disciplinas de: Arte, Filosofia e Sociologia. Neste ano, as escolas paranaenses contarão com apenas uma aula destas disciplinas no ensino médio. Devo dizer:- o governo paranaense se chamega com a política fascista bolsonarista, esta que ataca a vida, a ciência e o conhecimento de modo geral.
São muitas as definições de filosofia, mas a que mais me fez sentido este ano, foi me apresentada pela minha orientadora de mestrado, Professora Giselle: A filosofia enquanto saber memorial. Sim, minha gente. As nossas memórias, os nossos gritos interiores são importantes. Por isso, quero contar a vocês uma memória, talvez o meu grito inquieto que diz:- filosofar é importante!
O ano é 2008, primeiro dia de aula na Universidade, entrei na sala de aula e sentei na última carteira, ao lado da parede. Aos poucos as pessoas iam chegando, logo a sala estava cheia com pessoas das mais variadas idades. Me chamou atenção, uma moça da pele branquinha vestida de freira, no outro canto da sala.
-…Queria ouvir vocês…digam os seus nomes, por que vieram fazer filosofia e o que é filosofia para vocês?– disse o professor de olhos profundos e cabelos com cachinhos.
Um estudante, que já passava dos sessenta anos, foi o primeiro a falar, todo empolgado por iniciar o curso. Em sua voz senti toda alegria de alguém que apesar dos cabelos brancos, parecia um adolescente em plena puberdade empolgado com as novidades da vida.
Enquanto a turma falava sentia o nervosismo tomando conta de mim, era uma adolescente tímida e com pavor de falar em público. Pensava o que vou responder? Por que vim fazer filosofia? O que é filosofia? Tentei lembrar dos conteúdos estudados no ensino médio… o livro: O mundo de Sofia, que li e não entendi coisa alguma. Não! Nada daquilo me parecia responder o que era e o porquê resolvi fazer filosofia.
Comecei a relembrar o ano anterior, no terceiro ano do ensino médio, foi quando minha mãe foi diagnosticada com leucemia. Doença que em sete meses levou ela a definhar. No natal ela sequer conseguiu engolir qualquer coisa. O hospital Erasto Gaertner em Curitiba e a pensão ao lado, passaram a ser a nossa segunda casa, o lugar de tratamento dela e o meu de estudar para o vestibular enquanto ela lutava pela vida.
Janeiro de 2008 foi o mês mais horrível de toda a minha vida, em uma das consultas de rotina o médico disse que a doença tinha se agravado mais e que ela precisaria ficar internada. No dia 18 de Janeiro, a visita foi na UTI. Quando entrei, vi de longe seu corpo meio descoberto, usava fraldas, mas estava consciente e me olhou sorrindo. Do lado da cama uma foto nossa. Uma das enfermeiras se aproximou sorrindo e disse: –Então essa é sua filha que passou no vestibular de filosofia…parabéns menina! Sua mãe fala tanto de você, que a impressão é que já te conheço. Sorri meio sem jeito.
Logo a visita acaba, foi a última vez que vi o sorriso da minha mãe, no outro dia fui visitá-la novamente, antes de entrar na UTI, o médico e a psicóloga vieram me falar que ela tinha tido mais uma hemorragia cerebral e que entrou em coma. As palavras deles eram como navalhas me perfurando. A única coisa que consegui falar foi: – Ela está sentindo dor? O médico com os olhos cheios de lágrimas me disse: – não! ela não está sentindo dor. Não consigo explicar em palavras o que senti naquele momento, a dor era imensa, mas ao mesmo tempo, me confortava saber que ela não estava sofrendo. Ela já havia sofrido tanto. Ainda lembro dos olhos do médico e da psicóloga enquanto tentavam me confortar. Também não deve ser fácil para os profissionais da saúde lidarem com o sofrimento alheio. O humano ultrapassa a profissão.
Entrei na UTI novamente, só conseguia chorar.
Voltei para a pensão, naquela tarde até o fim da noite o quarto no fim do corredor se encheu de lágrimas. Foi a primeira vez que briguei com Deus, também foi uma das poucas vezes que senti ele presente. Não, eu não estava sozinha. Se perguntassem o que seria Deus para mim? responderia: – É um não de um médico…é um quarto no fim de um corredor.
Minha mãe morreu naquela noite; às 23:00 do dia 19 de Janeiro de 2008. Sinto muitas saudades. Nos acontecimentos mais importantes da minha vida : na minha formatura, no nascimento de meu filho e de minha filha… e em tantos outros, a falta dela foi ainda maior. É como um amigo uma vez me disse: – O amor deve ser isso, querer que a pessoa amada esteja presente nos momentos de felicidade…
-Ei moça.. moça aí do canto… tá me ouvindo?
– Eu?!…Sim!
-É sua vez… qual é seu nome?
-(…)
– Por que veio fazer filosofia? O que é filosofia para você?
– Prof… professor, pra mim filosofia é…
Disse qualquer bobagem. Sigo não tendo respostas… Aliás, alguém realmente tem?
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