
Entrevista com o cineasta ALFREDO MANEVY
Campos do Jordão, fevereiro/2025

Por Teresa Bendini
No dia 15 de fevereiro, um sábado, no Teatro Cláudio Santoro, por ocasião da abertura do “X Festival de Curtas de Campos do Jordão”, tive o prazer de assistir ao filme-documentário “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um sofredor” que abriu a Mostra. Foi um espetáculo memorável. Em cada uma das cenas, uma justa homenagem ao artista, cantor e compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, nascido em 1914 e falecido 1974, aos 59 anos.
O filme faz uma homenagem ao que temos de mais valoroso, ou seja, nossa música.
A escolha foi perfeita. Um tributo à obra musical de Lupicínio Rodrigues, que é um dos nossos maiores ícones musicais. Seu enorme talento nos devolve imediatamente aquele orgulho (por vezes relevado) de ser brasileiro. Devo dizer que a música sempre fez isso por nós, e o filme nos presenteia com essa constatação. Lupicínio Rodrigues, nascido em Porto Alegre, vai ter sua história contada num roteiro primoroso, amorosamente executado pelo cineasta Alfredo Manevy.
A genialidade do filme se escancara no seu desfecho, quando a família de Lupicínio discute sua ancestralidade africana. Foi nessa ocasião que eu pude conhecer o cineasta Alfredo Manevy, um ser humano ímpar. Essa entrevista é fruto de uma conversa gravada, descontraída, que tivemos enquanto aguardávamos a projeção dos curtas em seu primeiro dia de exibição. Tudo que aqui está foi transcrito na íntegra.
O filme, para quem quiser assistir, está disponível na Amazon Prime, Canal Curta On, NOW e Claro TV.
Teresa entrevista Alfredo Manevy
1-Teresa – Eu te disse que iria fazer algumas perguntas que ainda não foram feitas, então quero perguntar acerca da satisfação que o filme te trouxe, como você está se sentindo em relação a esse filme, a coisa da satisfação.
Alfredo Manevy – Muito legal você estar fazendo essa pergunta, porque eu sempre me pergunto, sobre o que esse processo representou para mim. E ontem foi um dia muito especial, aqui em Campos do Jordão, porque eu senti todo o afeto, da música, das pessoas, das memórias, de como as pessoas assistem o filme e se conectam com a música do Lupi. E aí elas trazem as memórias afetivas delas, dos pais, dos avós. Isso me alimenta muito, porque foi o que fez valer a pena do ponto de vista de uma realização que levou 5 anos de trabalho. Não foi a remuneração, não foi a ideia de um produto comercial, foi a possibilidade de produzir afetos. Produzir sentimentos, de gerar processos de conexão entre quem assiste e Lupicínio, e entre quem assiste e quem realiza o filme. Lupicínio é um poeta dos sentimentos que são difíceis de expressar por outras linguagens. Sendo ele um homem que falou de relações afetivas, daquilo que às vezes a gente não consegue botar em palavras, não consegue falar, confessar. Então para mim está valendo muito a pena. Teve momentos que não foram fáceis, porque a realização do filme foi atravessada por uma pandemia no meio, vivemos um momento complicado no Brasil no que diz respeito à arte, ao cinema, à cultura de modo geral. Mas hoje eu vejo que valeu muito a pena, eu aprendi muito, sigo aprendendo ao acompanhar o filme e perceber o quanto a memória musical é resiliente e define a sociedade brasileira. Sinto-me como um cineasta de primeira viagem lisonjeado de ter um Lupicínio Rodrigues como personagem. De certa forma, creio que ele passa a ser parte da minha família, da minha vida e poder encontrar pessoas, expectadores que se conectam com o filme e que, por causa dele, conseguem trazer seus afetos, seus sentimentos, fazem muito valer a pena.
2-Teresa – Por que o Lupicínio? E eu também gostaria de saber acerca dos bastidores do documentário, como diz o Dorival na sua música que a Gal trouxe prá gente, “todo mundo gosta de acarajé, o trabalho que dá pra fazer é que é”. A gente sabe pouco do desgaste, dos obstáculos, as vezes a questão governamental, ao invés de ajudar atrapalha, e a arte sofre um pouco de um tipo de orfandade, tendo que abrir caminhos, quase como uma picada, com facões. Talvez não só no Brasil, mas na América Latina toda. Porém penso que esse livro que acabamos de adquirir aqui na mostra, do Marcelo Ikeda, ”Das garagens para o mundo”, tenha algo a falar sobre isso, algo que nos revitalize o ânimo. Então, como você vê a sua produção nos bastidores do documentário? Eu ouvi sua fala sobre ele em alguns canais que falam de cinema e você disse que seu documentário tem um formato diferente dos convencionais. Aproveito para perguntar sobre isso, pois considero bem difícil achar o ponto certo, a medida certa numa obra. Suponho que seja muito fácil de se perder a mão. Desculpe por eu inserir tanta coisa numa única questão.
Alfredo Manevy– Começo pela equipe. Eu tive a sorte de reunir uma equipe, de ter o apoio dela. Especialmente na pesquisa, no roteiro, contei com muitas pessoas, como Marcia Paraíso e Armando Almeida. Tive realmente uma equipe generosa no sentido da sua entrega e numerosa também, com muitas especializações diferentes: O Lucas Nobile, que é um jornalista musical extremamente experiente, ele foi atras de áudios que eram dados como perdidos do Lupicínio e que conduzem o filme às falas do próprio Lupi. Quando ele encontrou isso, eu vi que eu tinha em mãos um tesouro e que sem ele isso jamais teria chegado em minhas mãos. A gente teve também a Cris Lopes da área de imagens, que conseguiu pérolas. Especializada em vídeo e imagem, ela também conseguiu resgatar coisas do Lupi. A questão do Lupicínio é que ele é um personagem pouco filmado. Muito fotografado, mas não tem tanto filme dele. Então é um desafio você fazer um filme sobre alguém que não é tão presente na memória do cinema ou da TV. Diferentemente de um artista que tivesse estrelado nos anos 70 para cá. No caso do Lupi, ele morreu no início dos anos 70. Então tem pouca coisa dele em imagem em movimento. Daí a gente ter que garimpar. E tivemos também que buscar outras formas de contar essa história que não só pela imagem dele, mas pelo som e pelas letras. Importante também mencionar o trabalho do GEPA, de Santa Maria, um grupo de estudos do pós abolição que é referência, ajudaram na pesquisa e se transformaram em personagens. Eles se dedicam a trazer a memória negra que não é tão reconhecida no Sul, ao contrário do nordeste, de outras regiões do Brasil onde ela está presente de forma assumida na historiografia e na imagem oficial. Do GEPA, por exemplo, foram mais de 20 pessoas envolvidas na pesquisa deste filme. Eu tive, portanto, uma equipe muito diversa atuando em paralelo, buscando e investigando, trazendo elementos, e isso faz toda a diferença no documentário. Porque para um documentarista poder trabalhar, ele é como um investigador, ele precisa cavar para achar materiais que sejam importantes, e eu preciso da imagem e do som. Um filme de uma hora e meia, é na verdade uma hora e meia imagem e uma hora e meia som. E o que faz o expectador entrar na história são imagens e sons. Então a gente precisa ir encontrando materiais que componham essa banda imagética, essa banda sonora, para que a gente possa compor esse mosaico. Essas pessoas me deram os materiais para que eu pudesse ir compondo essa história. Evidentemente, o meu trabalho, junto com os roteiristas e a montadora, foi como usar estes materiais, encontrar a forma narrativa. E acredito que encontramos uma forma interessante. Daí entra o porquê do Lupicínio. Para mim, uma figura encantadora desde minha adolescência quando comecei a descobrir melhor o samba, uma figura misteriosa também. Eu sempre fui apaixonado pela música dele. Mas eu sempre me perguntei como um sambista do sul do Brasil, daquela região, naquelas fotos em que ele aparece usando um sobretudo, completamente diferente da imagem, vamos dizer, do estereótipo dos sambistas do Rio tropical. Aí você tem a ideia de um sambista subtropical, da fronteira. Isso sempre me aguçou muito. Então eu disse: tem coisa aí, além da música, tem outras coisas nessa história. É uma paixão antiga minha, de memória afetiva. Aí entra o acaso. Um grande amigo meu produziu “Gal Costa canta Lupicínio “, o produtor Mauricio Pessoa, numa tournee da Gal nos últimos anos, e um dia ele me liga e diz: “Alfredo, eu estou aqui com a família do Lupicínio e eles estão reclamando que não tem um filme sobre o Lupicínio”. Havia um curta, excelente, do Beto Rodrigues, mas não um longa. Não tive outra coisa para dizer a não ser: “Estou indo agora para aí”. Fui para Porto Alegre no dia seguinte, peguei o avião. Porque eu vi que era uma missão. Eu não podia deixar de entender o que estava acontecendo ali na minha frente. Eu me formei em cinema na USP, mas fui para a política cultural, onde passei anos. Depois de anos na gestão pública, o cinema estava de volta no meu projeto de vida. Algo estava vindo para mim e era muito precioso e estava ali na minha frente. Então teve um porquê mais afetivo meu e um porquê da ordem do destino, não sei.
3-Teresa – Você pensa em contemplar outros ícones da nossa música com documentários tão bons quanto esse? Pergunto isso porque você falou muito da importância da música no cinema, das duas linguagens juntas.
Alfredo Manevy – Eu sou encantado pela música brasileira e latino-americana, eu concordo com você, a música brasileira se não for a melhor, está ao lado da caribenha e da americana entre as mais significativas e diversas. Eu creio que essa relação é fascinante porque a música fala profundamente no coração da população brasileira, as pessoas são apaixonadas por ela. Eu queria muito que um dia o cinema conquistasse esse mesmo lugar da música, é um desafio. Eu acho que ele está nesse caminho. Confesso que como alguém do cinema eu tenho uma inveja saudável desse lugar da música, que é uma música que os brasileiros cantam, sonham, conhecem, está na memória coletiva do Brasil. Ela forma a identidade do país, então me interessa entender tanto essa dimensão da poesia, da musicalidade e da economia, da indústria, porque Lupicínio foi alguém que gerou muito dinheiro para outras estruturas, filmes, sendo que nem sempre ele foi o beneficiado. Então, entender também essa dinâmica de como o país reconhece essa potência e como ele trata ou maltrata essa enorme dádiva que nós temos, se somos capazes de cuidar bem disso. Acho que o filme levanta essas questões.
Sobre realizar outros documentários retratando outros personagens, eu adoraria, mas como te falei, não basta o desejo. Eu gostaria, até sonhei e sonho em fazer uma série sobre o samba pegando seus vários personagens, mas eu sinto que precisa mesmo ter outros fatores que colaborem, não basta a minha vontade. Saíram agora filmes sobre o Luíz Melodia, Adoniram Barbosa, Dorival Caymmi, enfim, outros cineastas estão retratando esses talentos em seus filmes e eu acho isso ótimo.
4-Teresa – Como você vê a questão do público? Eu penso que o brasileiro deveria gostar de arte, exigir arte, prestigiar cinema, teatro etc.
Alfredo Manevy – Eu acho que esse tema é essencial. Cultura e arte têm que ser pensados como um direito humano, um direto universal, sendo que cabe ao estado e à sociedade garantir que todos tenham acesso a essa dimensão, fundamental da nossa cidadania no século XXI, seja na expressão e na fruição. É indispensável para entender o mundo em que se vive, ter uma experiência estética, musical, cinematográfica, como parte de um acesso primordial. Se você não tem essas vivências, você é podado de premissas muito básicas para estar e viver no mundo de hoje. Então, cabe ao Estado e às políticas públicas garantir a formação de públicos, a formação de plateias. Eventos como esse, “X Festival de Curtas de Campos do Jordão”, são eventos que convidam pessoas que nunca foram ao cinema ou foram uma única vez na vida, para que elas possam vir, se interessar e conhecer outros repertórios. Agora, eu acho que isso devia ser no Brasil, uma política de estado, ou seja, assim como a educação e a saúde, a política da cultura deveria ser um pilar do país para que cada um ou cada uma das pessoas pudessem ter desde sua tenra infância esse acompanhamento, não depender só dos pais, porque hoje é assim. Se os pais leem a criança também lê e isso vai passando. A escola não consegue sozinha quebrar esse abismo dos que leem e dos que não leem. Se o estado quiser gerar igualdade, terá que intervir, criar políticas públicas, uma operação colaborativa entre escolas, centros culturais, artistas para promover esse acesso. Pesquisas indicam que somente 10% da população brasileira frequenta cinema, ou seja, num país de 210 milhões de habitantes, só 10% vai ao cinema. Que país é esse que a gente está construindo? Que abismo é esse entre os que tem esse privilégio e tanta gente excluída? Excluídos de ver algo que nos amplia a consciência, que faz a gente se sentir motivado a compreender o Brasil. Ou seja, que sociedade é essa em que noventa por cento que não tem, nas suas vidas, oportunidades de entrar numa sala escura. Claro que essas pessoas assistem TV, tem celular, não se trata aqui de menosprezar essas outras formas de acesso, mas a sala escura, o teatro é uma experiência única.
5-Teresa – Você diria que a linguagem cinematográfica é a mais cativante, ou simpática, ou seja, que ela atrai mais público?
Alfredo Manevy– Uma pesquisa me chegou dizendo que 80% do uso da internet hoje é para ver vídeo. É lógico que você pode dizer: “mas isso não é cinema, é YouTube, pequenos vídeos caseiros”, mais se a gente olhar o lugar que a linguagem audiovisual tem na vida humana, ela nunca foi tão forte. As pessoas aprendem antes a fazer e editar um filme no seu celular do que escrever. Então olha como é importante a sociedade ter consciência disso, de que a linguagem do cinema e do audiovisual é um outro tipo de escrita. Ela tem que ser discutida em sala de aula, ela tem uma gramática, ela tem uma lógica. Então, se as pessoas têm uma formação e tendo acesso a essa discussão, elas poderão usar essa comunicação para seus próprios interesses, como comunicação, como arte, como ensaio, como estudo, não apenas como consumo, porque eu acho que hoje a faceta que o audiovisual tem mais forte é a do consumo. Numa sociedade de consumo capitalista, precisamos estimular outras relações.
6-Teresa – Você pronunciou duas palavras mágicas, “outras relações”. Creio que o filme nos convida para isso. Eu jamais imaginaria estar aqui conversando com alguém que entrega sua fala generosa e providencial ao meu incipiente gravador, inaugurando um encontro descontraído e prazeroso.
Alfredo Manevy – É um prazer estarmos dialogando sobre cinema. São espectadores apaixonados pelo cinema, cinéfilos que no fim do dia garantem que o cinema continue sendo uma experiência resiliente no mundo. Eu que agradeço esse espaço!
7-Teresa – Por que você se tornou um documentarista? E para a gente fechar, pergunto, qual foi sua formação?
Alfredo Manevy – Eu me formei em cinema na USP e fiz pós-graduação. Eu era crítico de cinema, tínhamos uma revista com amigos. Lá atrás eu era admirador do gênero documentário, por causa de nomes como Werner Herzog, Frederick Wiseman e Eduardo Coutinho. E depois passei anos na gestão cultural, fui secretário do MinC em Lula 1 e 2 e depois presidente da SP Cine. Gostei muito dessa experiência, porque me fez conhecer mais o Brasil. Hoje, de volta à planície, sou professor e cineasta.
8-Teresa – Você pegou um momento bom, não é mesmo?
Alfredo Manevy – Sim um momento mágico! Daí esse filme ser para mim uma volta ao cinema, porque eu me afastei do fazer cinema por 15 anos, pela questão da cultura, das políticas de cultura, e aí quando eu voltei para a sala de aula, eu pensei em ter essa oportunidade de usar essa gramática, essa reflexão que tenho feito, de poder criar algo. Enfim, aí veio o Lupi e a oportunidade de falar desse personagem, que dispensa apresentações. E que me deu a chance de ficar cinco anos pensando nele e nas pessoas que fazem parte dessa história fascinante, pesquisando muito e criando formas de contar esta história pela linguagem, pela montagem (contei com a montadora Isabel Castro). A minha caminhada foi por aí.
9-Teresa – Eu acho que você está se sentindo recompensado mesmo, porque o documentário é primoroso, genial. Uma ode ao Lupicínio Rodrigues e à nossa música. Ao que temos de melhor.
Alfredo Manevy – Fico feliz com o teu entusiasmo, espero que o filme siga circulando.
10-Teresa – Sobre a disponibilidade do filme? Como assisti-lo em casa?
Alfredo Manevy – Está na Amazon Prime, Curta ON, NOW e Claro TV.
11-Teresa– Sobre a repercussão dele fora do país, teria algo a nos contar?
Alfredo Manevy – Graças a revelação que Lupi teve de uma música não creditada indicada ao OSCAR, hoje um advogado americano, Miles Colley, está tentando fazer a Academia reparar essa injustiça. A história toda está no filme!

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Que entrevista fuida, gostosa de ler!!
Excelente entrevista! Parabéns à entrevistadora e ao entrevistado! Carecemos desse tipo de reflexão nas nossas leituras diárias. Bravos!
Ótima entrevista, marcando um evento tão especial para nossa cultura e para a produção e divulgação do cinema no Brasil. Parabéns pelo film , que adorei, e parabéns ao FCCJ. Vida longa ao Festival de Cinema de Campos do Jordão!
Thereza, gratidão, eu também amei o filme, grandioso, uma merecida homenagem ao cantor e compositor Luícínio Rodrigues.