Entrevista com Benilson Toniolo
Teresa Bendini entrevista o escritor Benilson Toniolo sobre o seu livro “Barra-dos-Meninos”, sua última produção
Benilson Toniolo nasceu em Santos, SP (1968) e vive em Campos do Jordão há três décadas. Com licenciatura em História, pós-graduado em Ciência Política e Especialização em Realidade Latino-Americana, faz parte de academias de letras e outras entidades de cultura e ocupou, durante 12 anos, o cargo de Secretário Municipal de Cultura de Campos do Jordão. “Barra-dos-Meninos” (Penalux, 2024) é seu primeiro romance, antecedido por outros 25 livros entre poesia, contos, crônicas, biografia e História.
Atualmente é Secretário Municipal de Valorização da Cultura de Campos do Jordão (SP)
Pertence à:
Associação Nacional de História – ANPUH-SP
Associação dos Dirigentes Municipais de Cultura do Estado de São Paulo / ADIMC
Academia de Letras de Campos do Jordão
Academia Jovem de Letras de Campos do Jordão
Academia Bauruense de Letras
Academia Municipalista de Sergipe
Academia de Letras e Artes de Riachuelo/SE
Instituto de Estudos Valeparaibanos – IEV
União Brasileira de Escritores
Confira a Entrevista:
1- No terceiro capítulo: “Barra-dos-Meninos”, você fala da formação do povoado que deu origem ao livro, também chamado “Barra-dos-meninos”. O capítulo nos faz adentrar nas entranhas de cada personagem. Conta da geografia, da formação étnica, das condições que se juntaram para a composição do cenário que resultou nesse belo romance. Cita o cacique Seregy, figura importante para se compreender a história do estado do Sergipe. Enfim queria que falasse da realidade que permitiu o livro. Fale como se deu seu o processo criativo. O fato de ser santista, nascido em uma cidade praiana, contribuiu na propriedade contida na escrita?
R.: O livro surgiu de uma viagem a Sergipe, quando recebi um convite de duas Academias de Letras locais para ser membro correspondente. A posse se deu em uma sexta-feira, dois dias antes do segundo turno da eleição presidencial de 2022 e de todo aquele clima de indecisão, angústia e incerteza que tomou conta do país. Viajando pelo estado, pude ver como as pessoas de diferentes classes sociais reagiam diante daquele cenário. Então devo dizer que o surgimento do livro ocorreu diante desse quadro, enquanto eu transitava por aquele que é o menor estado do país, do ponto de vista territorial, mas que se revelou, ao menos para mim, uma agradável surpresa enquanto portador de uma identidade cultural imensa, sólida e palpável.
A cidade de Santos, onde nasci, não está presente neste livro, que tem como objetivo oferecer ao leitor a minha leitura, pessoal, de como se deu a formação do povo brasileiro, que está representado em alguns dos principais personagens da história, bem como todas as alegorias, virtudes e misérias que nos compõem enquanto povo.
“Barra-dos-Meninos” não está localizada no litoral sergipano, mas em algum lugar remoto entre o litoral e o sertão, algo como o Brejo paraibano e a zona da mata pernambucana, por exemplo. Um lugar onde há profusão de recursos naturais e, portanto, não existe escassez de comida, e sim de educação e cidadania – é essa a escassez principal. O lugar não tem escola, não tem representatividade política e os habitantes desconhecem até mesmo a qual município, e a qual Estado, pertence o território. É quase um “não-lugar”, como tantos outros que se espalham pelo nosso território, mas que, juntos, acabaram por compor nossa geografia e nos constituir como povo. Essa indefinição marca o enredo. Afinal, Barra-dos-Meninos é o quê? Cidade, distrito, vila, ajuntamento, povoado? Essa indefinição marca a vida das pessoas. Quem não conhece o seu lugar, não se identifica com ele e, portanto, não pertence a lugar nenhum.
2- Sobre as mulheres que aparecem nele: Biinha, dona Bilu, Soledade, Marieta dos doces, Manu, Carolina, Glorinha e por fim, a forasteira Violeta. Janeide, mãe de Carolina, me parece ser a mais potente e de fato transgressora, essa sim representa a mulher lutadora e confiante, que sabe defender o seu lugar e o que fazer para mantê-lo. Violeta não me parece ser alguém que chega para modificar a estrutura local.
Como foi para você construir o perfil dessas mulheres. Em que elas potencializam o livro?
R.: O livro é todo uma grande metáfora. Quando escrevi a história, não pensei em dar às personagens femininas qualquer tipo de função social definida, nem de simbolizar movimento nenhum. Pensei nas mulheres como personagens comuns de uma história política, que é o que o livro é. Um livro político. A personagem Violeta, apesar de todo o espírito livre e vanguardista que a caracteriza, no fundo só tem um objetivo: ir para a Europa. É a representação da nossa elite artística, talvez, que só sente reconhecida se for notada e premiada pelos colonizadores históricos. Por isso ela não interfere na estrutura local, porque seu projeto é pessoal, e não coletivo. É uma postura que lembra um pouco alguns dos nossos movimentos artísticos, que lança mão dos recursos coletivos – no caso, a coreografia dos caranguejos – para seus projetos individuais em busca de mero reconhecimento pessoal – de preferência, do estrangeiro. Violeta é isso. Sua relação com Liduíno, sexista e carente, deixa claro esse comportamento. A ela não importam a presença de Carolina e nem eventuais “solidariedades femininas”. Tanto faz. Por isso ela movimenta o povoado, mas não interfere nele. Mexe em tudo, mas não muda.
A força de Janeide, penso eu, vem da necessidade de lutar pela sobrevivência diária e também de se impor diante do elemento estranho que coloca em risco seu maior patrimônio – a filha. Do mesmo modo, é a chance que ela tem de garantir que a menina não tenha destino semelhante ao que ela teve – peregrinar pelas repartições públicas de São Vicente a vender doces caseiros.Diante da oportunidade de uma vida menos difícil, Janeide usa a força da fome e da solidão para estabelecer as diretrizes da relação que nasce entre a filha única e o jovem pretendente. Janeide não tem nada de ingênua. Pelo contrário, luta com as armas que tem para fazer valer seu sonho e sua dignidade. E vence. Gosto muito da figura de Glorinha, a prostituta. Fico triste quando penso em Soledade, a esposa do pastor neopentecostal.
3 – Sobre as questões políticas abordadas no livro, são muito indagadoras. Pobreza, abandono, uma certa ousadia do próprio povo que vai, ele mesmo, decidindo seu destino, resolvendo sua problemática, abrindo caminhos, até desembocar no episódio dos índios. Interessante a presença de Euclides da Cunha nas várias citações que abrem os capítulos enriquecendo o livro. Poderia falar sobre essa escolha e no que ela dialoga com a narrativa?
R.: Ariano Suassuna dizia que quem não entendeu o episódio de Canudos, não é capaz de entender o Brasil. Eu concordo. É evidente que não existe paralelo a ser estabelecido entre a saga de Euclides e o meu livro, mas escolhi certos trechos dessa obra para enfatizar o fato de que, sem que a gente se dê conta, existem inúmeros Canudos espalhados, ainda hoje, pelo país. Se as forças que os combatem não são as mesmas, os métodos são. E a gente pode citar inúmeros, desde Eldorado dos Carajás, que até hoje sangra, até os massacres do Carandiru e da Candelária, os meninos e os trabalhadores mortos diariamente na periferia das grandes e das pequenas cidades… Vivemos todos em um enorme Canudos, à mercê das matracas sanguinárias do Estado. O sangue que verteu em Monte Santo tem a mesma cor, a mesma espessura e a mesma origem das vítimas de hoje. Em “Barra-dos-Meninos”, não há a representação de Antonio Conselheiro, mas há a mesma relação de abandono do povo pelo Estado – que, depois, aniquila o próprio povo quando este se rebela. A relação, se é que há alguma, está aí. O lugarejo de Barra-dos-Meninos não pretende ser Canudos. O Brasil é Canudos.
4 – O capítulo da Feira é muito instigante porque nele, todos os personagens são apresentados. A feira é um retrato econômico, social e cultural do local, aliás é assim mesmo em todas as cidades. Mas em Barra-dos-meninos isso se torna crucial. Gostaria que contasse um pouco do personagem cordelista, o cego Irineu, que somente em feiras como aquela é possível vislumbrar.
R.: Existem, na história, três lugares centrais: o bar do Manolo, onde se reúnem os homens e que é um dos únicos, se não o único, espaço de lazer dos moradores locais. O outro é a praça da Senadora, à sombra de uma velha jaqueira, ambiente também majoritariamente masculino. E tem a feira, que você destaca, como o único espaço público onde todos, e não apenas o núcleo masculino, se reúnem. Não é à toa que é justamente na feira que Violeta, a forasteira, tem possibilidade de entrar em contato com todos os núcleos. O cego Irineu, por sua vez, é o mais lírico e poético de todos os personagens, apesar das grandes dificuldades físicas que enfrenta e do seu drama pessoal. É uma homenagem a Patativa do Assaré, que também era cego, a Zé Limeira, a Leandro Gomes de Barros, e também aos poetas populares do Nordeste contemporâneo, a quem, aliás, o livro é dedicado. O homem velho, cego, preto e poeta popular nordestino se constitui em uma instituição brasileira que deve ser preservada. E, claro, dentro da proposta das representatividades, o personagem faz referência à trajetória dos cidadãos africanos escravizados. Sua cegueira é a própria invisibilidade a que foram submetidos os escravizados durante mais de 350 anos, da mesma forma que a imobilidade.
5 Tenho que dizer que o livro é encantador, ele aborda todas as questões universais: pobreza, injustiça, violência, disputa religiosa, preconceitos, tragédias, cheio de humanidade, o livro flui porque sua linguagem poética nos comove. Sem esquecer do vocabulário peculiar que vem à tona, fruto da sua pesquisa. Poderia falar um pouco disso?
R.: Fico feliz que o livro tenha trazido essa percepção. Como disse, é uma tentativa muito pessoal de retratar minha visão sobre a formação social de nosso país desde seu “achamento”.
Convivo diariamente com a cultura nordestina em todas as suas manifestações, por uma questão familiar e também de gosto pessoal. Música, poesia, dança, as pinturas de Cícero Dias… esse ambiente me circunda. O livro, aliás, homenageia José Condé, João Cabral de Melo Neto e Josué de Castro, todos pernambucanos. Nada mais natural que todo esse entorno se fizesse presente na obra, que pretende ser um manifesto de amor e de solidariedade ao Brasil e seu povo.
Deixo aqui trechos do capítulo que eu considero magistral (Teresa Bendini)
Domingo no Mangue
“Esta é a hora em que as águas do rio estão paradas.
Os bichos dormem: todos eles.
As aves ocupam os galhos mais altos das árvores e esperam a hora de o sol baixar para fazer a última ronda, até encontrar o lugar em que, todos os dias, recolhem-se para dormir. As folhas do marmeleiro esqueceram que no domingo não se canta. Há que se respeitar os desígnios que existem antes de haver o mundo. Em suas covas, sapos e tatus vigiam.
Rãs conversam com as nuvens que ainda estão por nascer. Nas sombras que ninguém vê, calangos piscam os olhos tentando se antecipar ao perigo que não virá. Hoje não, porque é domingo, dia em que os pescadores não saem.
Morena, Vingador, Calypso, Vitória, Minha-mãe, Carranca e todas as outras canoas gozam seu dia de descanso.
Esticadas sobre a areia e sobre os mourões, as redes secam e exalam seus cheiros – cheiro de água, cheiro de lama, cheiro de peixe, cheiro de suor de homem, cheiro de sangue, cheiro de sol, cheiro de luta, cheiro de sonho, cheiro de isca apodrecida. Cismam os caranguejos e se reproduzem, garantindo a subsistência dos homens e da vila. O grande lagarto, …em tudo há o clamor das coisas paradas…”
Sinopse do livro: Encravado entre os estados da Bahia e de Sergipe, o lugarejo imaginário de Barra-dos-Meninos tem sua rotina alterada pela chegada de novos personagens: um pastor evangélico e sua esposa e uma estudante de dança, que passam a influenciar a vida dos moradores e tentam entender o funcionamento do lugar, que sobrevive por meio daquilo que retira do mangue e do rio. A chegada dos visitantes encontra resistência entre os nativos – que, no entanto, passam a questionar sua condição de pobreza e suas dificuldades. Dedicado a Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e José Condé, e tendo como carro-chefe a cultura e a paisagem de uma parte do Nordeste brasileiro, Barra-dos-Meninos acaba por se apresentar como uma metáfora da formação histórica do povo brasileiro e sua destinação.
Onde comprar: https://www.editoralitteralux.com.br/catalogo-titulo/barra-dos-meninos;
E-mail: benilsontoniolo@hotmail.com.br
Excelente entrevista, Teresa, parabéns!
Fiquei curiosa sobre todo esse enredo.
Olá Beth, agradeço a sua generosidade em abrir a Entrementes para a entrevista. A Entrementes sempre esteve do lado da arte e da cultura, isso é providencial. O parabéns deve ser dado à todos nós, os leitores dessa bela revista on line, temos que comemorar. O que acha?