Entrevista com Flávio Ricardo Vassoler
Por Raul Tartarotti
Em janeiro de 2021, meu professor de literatura russa, Flávio Ricardo Vassoler, brasileiro, paulista, escritor, foi morar em Portugal, na cidade de Braga, onde vai ministrar aulas de literatura, filosofia, entre outros temas correlatos. Ele mantém um canal no YouTube, Flávio Ricardo Vassoler, a partir do qual oferece aulas ao vivo, resenhas de livros e filmes, leituras de grandes obras e vídeos de viagens. Vassoler também ministra cursos, periodicamente, pela plataforma Zoom. É autor de quatro livros: O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013); Tiro de Misericórdia (nVersos, 2014); Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2014); e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2018).
Durante esta semana, conversei com o Flávio Ricardo Vassoler sobre seus planos e sua opinião sobre diversos temas.
*Flávio, depois de toda sua trajetória no Brasil, por que você decidiu passar um tempo em Portugal?*
Minha vinda para Europa tem como objetivo a obtenção da cidadania italiana e também pelo fato de eu gostar muito dessa historicidade, da arquitetura monumental, palaciana, do belo, apesar de sabermos que tudo isso está vinculado a uma classe nobre, tão ou mais parasitária quanto os atuais mandatários. Quando vim para a Europa em outras oportunidades, senti uma conexão muito grande, e também há o fato de que eu estudei um escritor da literatura russa, o Dostoiévski. Gosto muito dessa historicidade, da arquitetura contemplativa, e a Europa está repleta de cidades antiquíssimas. Braga é uma cidade fundada antes do nascimento de Jesus Cristo, salvo engano no ano 16 a.C., pelo imperador romano Otávio Augusto, e mantém ruínas romanas e uma série de catedrais medievais em meio a um centro histórico belíssimo. É isso que vim buscar, me sinto muito influenciado e inspirado por esses aspectos para escrever minha literatura e para compor temas e discussões das aulas ao vivo e das resenhas de livros e filmes que faço em meu canal no YouTube.
*Você pretende voltar ao Brasil ou já traçou novos rumos além-mar?*
Olha, Raul, nesse momento, pretendo ficar na Europa até pelo menos a obtenção da cidadania italiana e gostaria muito de, após viver aqui em Portugal, me dirigir a países da Europa mais central, como a França e a Alemanha. Tenho uma vinculação muito forte com o Leste Europeu, que tem ligação com a Rússia e com aquela atmosfera do Kafka, de que gosto muito. Já estive em muitos países do Leste Europeu, tais como a Polônia, a Croácia, a Sérvia, a Bósnia, a República Tcheca, a Hungria, a Letônia, a Estônia, a Bulgária e a Romênia. Gosto daquela atmosfera e sempre estive na Europa durante o inverno na Europa, como agora. Dessa vez, estarei também no verão e tenho interesse em singrar esses países, assim que eu obtiver meu passaporte, e vou continuar a peregrinar para além do continente europeu, vou até a Ásia, a África e, eventualmente, retornarei à nossa América Latina. Mas não vou lhe dizer precisamente quando.
Eu até vislumbrava um projeto nômade dessa forma, porém, a partir da fundação do meu canal no YouTube, as coisas se estruturaram de tal maneira que eu pude pensar em me tornar um nômade digital. Dizer que voltarei a morar em nosso país, hum, não sei. Certamente voltarei para visitar minha família. O que desejo fazer nos próximos anos é atracar em vários portos. Isso é algo que me atrai muito. Desde os mochilões que eu já fizera, passando por um curso sobre literatura russa que eu ministrei, em 2017, a bordo do Grande Expresso Transiberiano, essa ideia ronda o meu imaginário. Para escrever o _Diário de um escritor na Rússia_, viajei por dez cidades da Russia europeia durante a Copa do Mundo de 2018. [Foram elas: Moscou, Níjni Novgórod, Kazan, Saransk, Samara, Volgogrado (antiga Stalingrado), Rostov-sobre-o-Don, Sotchi, Kaliningrado (antiga Königsberg) e São Petersburgo.]. Esse trabalho que vincula criação literária, reflexão e viagem é algo que me atrai muito. Daí essa dimensão do nômade, fiel como os pássaros migratórios.
*Você está trabalhando em seu próximo livro?*
Sim, estou trabalhando no livro Metamorfoses, os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai. Trata-se de um romance de formação em diálogos, livro que está praticamente pronto. Eu estou fazendo as últimas revisões e dando as últimas pinceladas na capa. Vou criar um selo editorial próprio (Nômade, fiel como os pássaros migratórios), e minha ideia é que esse livro seja publicado em maio de 2021. Quero fazer um lançamento virtual em meu canal no YouTube, que acaba de completar seis meses e já caminha para 10 mil seguidores e seguidoras. O livro terá tiragem no Brasil também.
Metamorfoses foi concebido, inicialmente, a partir de um monólogo dialogado entre Janjão e seu pai, no conto de Machado de Assis intitulado Teoria do medalhão. Trata-se de um conto maquiavélico em que o pai ensina ao filho uma receita de bem-viver e, ao mesmo tempo, enseja uma crítica social subliminar à sociedade brasileira de meados do século XIX. Quando eu mesmo pensei em escrever uma Teoria do medalhão em diálogo com a nossa sociedade, de como a imaginar como seria o diálogo entre um pai e um filho de classe alta a respeito de temas contemporâneos, vi que a conversa nao exauria afetos que eu mesmo gostaria entretecer em uma relação com um eventual filho. Foi aí que eu comecei a escrever uma série de diálogos a partir da infância do Ricardinho, conversas que foram se desdobrando para a adolescência e para o começo da vida adulta do rapaz. Assim, meu livro Metamorfoses, que é esse romance de formação em diálogos, traz à tona conversas com uma linguagem poética das crianças, retomando uma fala do poeta brasileiro Manoel de Barros, para quem “a criança erra na gramática, mas acerta na poesia”. O livro tem diálogos sobre amor, amizade, democracia, revolução, impossibilidade de redenção, traição, ciúme, inveja, e assim por diante. A obra está muito perto do útero da gráfica pra vir ao mundo. Estou concedendo esta entrevista a você no começo de fevereiro, e está muito perto o momento de o livro nascer.
*Que considerações você pode fazer sobre o descobrimento do Brasil e a figura de Cabral?*
A dimensão da chegada dos portugueses ao Brasil é extremamente polissêmica, repleta de sentidos e significados. O Brasil, anteriormente, nao existia com nome de Brasil, mas o território já existia com seus moradores e moradoras originais, aqueles e aquelas que foram chamados de índios. A historiografia, hoje, sabe que as terras brasileiras não receberam o aporte pela primeira vez com Pedro Álvares Cabral. Falava-se que havia uma confusão sobre se eles haviam chegado às Índias ou não, e daí por que os habitantes foram chamados de índios.
O processo de colonização foi repleto de contradições, brutalidades e tensões. Ele envolveu o morticínio e a violência contra as populações originais. Ao mesmo tempo, no bojo da formação daquilo que o teórico do socialismo dito científico Karl Marx chamou de acumulação primitiva de capitais, a colonização atrelou o Brasil, como nação colonial subordinada ao império português, à formação do mercado mundial.
As elites brasileiras, até hoje cooptadas pelo imperialismo de países de capitalismo mais agressivo e avançado, alijam boa parte da população das riquezas produzidas em nosso país, que logrou se tornar uma potência econômica, mas que agora vem perdendo fôlego, dados os resultados pífios e antissociais vinculados ao atual governo federal. O Brasil caiu do 12.º lugar no ranking das principais economias do mundo, no qual já chegou a despontar como a 5.ª economia mundial, ultrapassando inclusive a Inglaterra.
É importante dizer que a colonização trouxe um processo de violência e de subordinação cultural por meio dessa violência. O Brasil só veio a fundar suas primeiras universidades no século XX; as primeiras faculdades surgiram com a ida da família real portuguesa ao Brasil, no inicio do século XIX, para fugir das tropas napoleônicas. A coroa portuguesa abandona a Península Ibérica e transforma o Brasil em capital de seu império colonial. Parece-me fundamental frisar esses aspectos de que a colonização trouxe um legado bastante contraditório para o Brasil e para Portugal, países que estabeleceram fortes vínculos ao longo dos séculos. Há uma enorme comunidade portuguesa enorme no Brasil, assim como há uma grande comunidade brasileira enorme aqui em Portugal. A proximidade é não só linguística, mas também comportamental e cultural. Eu fico maravilhado com a arquitetura de Braga. Já estive em Lisboa há muitos anos e agora, chegando a Portugal, passei um dia em Lisboa, cidade pela qual tenho um apreço muito grande. São ligações literárias, culturais e profundamente históricas, ainda que eivadas dessas contradições do arbítrio colonial.
*O que você pensa sobre as relações luso-brasileiras de ontem e de hoje?*
Hoje, Brasil e Portugal mantêm uma série de relações políticas, como a facilitação do trânsito de pesquisa de brasileiros e brasileiras, oferecendo bolsas de estudo e a possibilidade de trabalho. Há um tratado entre Brasil, Portugal e Itália, que permite a utilização dos respectivos sistemas de saúde pública a todos e a todas. Portugal é um país bastante histórico, com uma forte dependência do turismo, assim como parte considerável da costa brasileira. Hoje, o Brasil sai dessa posição mais tíbia em termos econômicos, apesar de vastas frações de suas elites serem amplamente conservadoras e não imaginarem o país como uma nação grande e efetivamente independente do ponto de vista econômico e científico. O Brasil sai de uma posição subalterna e se transforma numa pujante economia mundial, a despeito do que tem sido feito agora em termos de reversão do processo de industrialização. Parece-me importante, então, pensar nessas relações como uma chave de caráter mais parelho, a despeito das muitas desigualdades que o Brasil nunca conseguiu mitigar, a não ser ao longo da década em que houve governos mais progressistas (2003-2016). Então, parece-me que as relações, hoje, são muito salutares e bilaterais. Há concursos e prêmios literários envolvendo os dois países. Portugal e os países lusófonos abarcam escritores das várias literaturas de língua portuguesa compostas ao redor do mundo. Há uma dimensão de Portugal como um país cada vez mais vinculado a valores da social-democracia, com um governo progressista nesse momento e um Estado de Bem-Estar Social (_Welfare State_) que sofreu abalos desde a crise de 2008, mas que mantém uma vocação de inclusão. Muitos brasileiros vieram a Portugal depois da eleição do atual governo de extrema-direita no Brasil.
*Fale-me sobre os brasileiros no mundo e em Portugal*.
Os brasileiros e brasileiras estão espraiados pelos mais diversos países. O Brasil é um pais que, historicamente, passa por períodos de crescimento econômico entremeados por momentos de forte recessão, e isso faz com que grande parte da população procure uma massa salarial maior em países no Primeiro Mundo. Tal medida, inclusive, permite o envio de dinheiro para suas famílias. Neste momento, está acontecendo um êxodo muito grande do Brasil por causa dos problemas econômicos por que o país vem passando, problemas agravados pelo horror pandêmico. Eu já morei em Chicago, nos Estados Unidos, e em Moscou, na Rússia, então Portugal é o terceiro país estrangeiro em que moro. Fiz parte do meu mestrado em Moscou, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, e meu pós-douturado em literatura russa junto à Northwestern University, que fica em Evanston, cidade ao norte de Chicago. Tenho essa característica nômade e nunca deixei de encontrar brasileiros e brasileiras nos vários países por que passei. Então, digo que o Brasil tem uma população enorme e com um forte ímpeto de desbravamento, o que faz com que haja uma comunidade brasileira em cada canto do mundo. Alguns anos atrás havia um programa chamado _O mundo segundo os brasileiros_ – por sinal, vários episódios estão no YouTube –, no qual brasileiros e brasileiras contam suas experiências ao redor do mundo.
Meu canal no YouTube, originalmente, não é um canal de viagens, mas agora que estou morando em Braga vou começar, assim que possível, a viajar pelas cidades portuguesas, que em Portugal são chamadas de concelhos (assim mesmo, com “c”), e farei vídeos de trazendo as peculiaridades, histórias e estórias de Portugal. E, bom, como estou a 50 minutos da fronteira com a Espanha, logo o país vizinho vai ser um território que eu também vou visitar.
*Poderia tecer um comparativo da cidade de Braga em relação ao resto do país? A Lisboa, por exemplo, ou a Santarém, se conhecer?*
Eu ainda estou conhecendo Braga, faz 3 semanas que estou aqui. Eu já conhecia Lisboa de uma viagem que fiz pela Europa no final de 2012. Braga é a terceira maior cidade de Portugal, depois de Lisboa e do Porto. Portugal é um país de proporções geográficas bem menores que o Brasil, a Rússia e os EUA, é claro. Lisboa me pareceu uma cidade muito encantadora, com uma arquitetura tradicional e histórica que aprecio muito. Gosto de ver as marcas históricas, os períodos consolidados, uma dimensão de construções arquitetônicas para a contemplação e não só vinculadas ao pragmatismo das meras instalações. A arquitetura lisboeta parece afagar as pessoas com a poesia de suas muitas cores. Lisboa me pareceu, sobretudo, uma cidade policromática. Eu cheguei a Lisboa no inverno, mas com uma temperatura mais amena, já que Chicago e Moscou, onde já morei, têm invernos rigorosíssimos. Aqui em Braga o inverno é bastante ameno, e em Lisboa também não faz muito frio. No final de 2012, quando estive aqui em Portugal, não precisei me guarnecer tanto e foi uma viagem muito tranquila. A cidade é uma encarnação ereta do arco-íris, a gastronomia é formidável.
Braga tem um centro histórico muito bonito. Fora de tais limites, trata-se de uma cidade mais pragmática. Porém, o centro histórico com as catedrais, as ruínas romanas e seus pequenos prédios de dois andares policromáticos fazem com que os letreiros comerciais tenham que se acomodar à beleza dos antigos edifícios, ao contrário do que acontece em muitas cidades brasileiras, tomadas por placas comerciais, que enfeiam a cidade. Então, caminhar com a badalada dos sinos, caminhar com uma dimensão de que é possível sentir o cruzamento dos tempos históricos, é muito interessante. E Lisboa, a despeito de ter uma magnitude bem maior do que Braga, ainda assim mantém seu aspecto histórico.
*O que ficou a conhecer melhor dos portugueses que não conhecia antes de se fixar em Portugal?*
Ainda não pude estabelecer relações mais profundas com os portugueses e as portuguesas, pois faz pouco tempo que cheguei. E a dificuldade também se dá pelo contingenciamento imposto pela pandemia do coronavírus. O que posso dizer é que a recepção que tive na universidade foi muito positiva e de muita cordialidade. O povo português me parece mais introspectivo que o povo brasileiro, mas ainda assim há bastante cordialidade e solicitude. Achei muito interessantes as diferenças vocabulares e de construção sintática das nossas duas línguas portuguesas, o português de Portugal e o português do Brasil, ou, por outra, o português e o brasileiro. É muito interessante perceber a utilização diferencial do gerúndio (“tu estás a falar”, à diferença do nosso “você está falando”). A utilização do pronome pessoal do caso reto, (“tu”, no caso de Portugal), a maior coloquialidade brasileira. Essas são marcas fortemente perceptíveis no cotidiano. Vejo isso no supermercado, ao pedir uma informação para alguém ou ao falar com uma pessoa na rua.
*Pergunta final: para quem quiser fazer seus cursos, onde e como é possível se inscrever?*
Bom, Raul, para encontrar meu trabalho há quatro fontes virtuais. Primeiramente, o meu canal no YouTube, _Flávio Ricardo Vassoler_, que é o canal que está centralizando todos meus trabalhos áudiovisuais. Nas segundas-feiras, às 18h20 (horário de Brasília), eu minstro aulas ao vivo, abertas e gratuítas. Nas quintas feiras, às 20h, faço resenhas de livros, e nos sábados, às 10h, resenhas de filmes. Entrementes, nas terças, quartas, sextas e domingos, às 11h, faço leituras de textos de grandes obras de autores e autoras. Essa é a programação fixa do meu canal, que ainda conta, eventualmente, com quadros do _Café com Vassoler_, do _Vassoler debate_, em que eu recebo convidados e convidadas, do _Vassoler responde_, em que eu seleciono eventuais perguntas de membros humanistas do canal e faço uma arguição.
Eu também mantenho páginas no Facebook, no Instagram e no Twiter.
Desde outubro de 2020, venho ministrando cursos a respeito da obra de Dostoiévski pela plataforma Zoom. Os cursos têm recebido um aporte muito grande de alunos e alunas e vêm sendo ministrados nesse momento poque 2021 é o ano do bicentenário de nascimento de Dostoiévski. Assim, resolvi homenagear o autor e disseminar cursos, inicialmente, a partir de suas obras. Já ministrei cursos sobre Crime e Castigo (1866), O idiota (1869), Memórias do subsolo (1864). Nesse momento, estou ministrando um curso sobre Os demônios, e, em apenas um dia de divulgação, as vagas para o próximo curso, em que discorrei sobre Os irmãos Karamázov, já se esgotaram.
Depois dos cursos sobre as principais obras do autor, vou começar a lançar cursos de diálogos entre Dostoievski e outros autores seminais: Dostoiévski e Nietzsche, Dostoíevski e Tolstói, Dostoiévski e Kafka, Dostoiévski e Albert Camus, Dostoiévski e o cinema (diálogos com Ingmar Bergman, Lars von Trier e Woody Allen). Essas são algumas idéias que tenho. Então, ao longo deste ano, vou ministrar tais cursos sobre Dostoiévski, de modo a homenagear esse autor fabuloso que marcou minha vida e meus estudos, desde a minha pesquisa de iniciação científica até o término do meu pós-doutorado.
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