Entrevista com o crítico e cineasta Marcelo Ikeda

Entrevista com o crítico e cineasta Marcelo Ikeda

Marcelo Ikeda é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, com bolsa-sanduíche na Universidade de Reading (Inglaterra) e professor de cinema e áudio visual da Universidade Federal do Ceará. Autor de diversos livro sobre o cinema contemporâneo brasileiro, entre os quais estão Cinema de Garagem, 2011 com a parceria de Dellani Lima, Cinema Brasileiro a partir da Retomada, 2015, entre outros. Atua também como cineasta, crítico e curador.

Mantém os sites www.cinecasulofilia.com e www.marceloikeda.com

Estive com ele durante o Festival: “Curta Campos do Jordão” que ocorreu no mês de fevereiro último (15 a 22) em Campos do Jordão quando ele me concedeu essa entrevista. Ela foi gravada durante uma conversa descontraída e aqui se encontra na íntegra.


*Teresa – Marcelo Ikeda, como é que o cinema aparece para um garoto assim, tão novo e já apaixonado pelo cinema, produzindo livros sobre esse assunto.

*Ikeda – Apareceu de uma forma meio misteriosa. Eu sou uma pessoa da periferia do Rio de Janeiro, e, além disso, meus pais, minha família não possuem uma formação ou afinidade específica para poder me iniciar nos campos da arte, porque precisaram correr atrás da sua sobrevivência, se dedicaram a outras coisas, não tiveram essa oportunidade. Então eu fui descobrindo a cultura e a arte de uma forma muito particular e solitária, às vezes eu acho que até foi por acaso, de forma totalmente improvável. O cinema foi surgindo justamente a partir da televisão, a partir da vídeo locadora que tinha na esquina da minha casa. Eu fui descobrindo alguns filmes e depois passei a frequentar a Cinemateca do MAM. Outro lugar importante foi o Centro Cultural Banco do Brasil e também a locadora Polytheama, do Julio Cesar de Miranda. Assim aos poucos eu fui descobrindo clássicos do cinema, fui vendo filmes mais antigos que me interessavam. A partir daí, eu fui conhecendo pessoas e fazendo amizades com quem frequentava os cineclubes ali na virada entre os anos 1990 e os anos 2000, fui me enturmando numa geração que estava descobrindo outros filmes e outros modos de fazer e que também começava a fazer seus próprios vídeos de uma forma independente. Então fui me engajando no cinema dessa forma, assim, primeiro como cinéfilo, vendo os filmes mais diversos do mundo e aí claro começando com os filmes americanos que é o que a gente recebe primeiro, mas depois eu fui descobrindo os filmes brasileiros, os franceses, italianos, filmes alemães, e também os japoneses, que para mim foi uma grande descoberta. Eu sempre digo isso, o cinema entrou na minha vida primeiro como um cinéfilo, como espectador.

*Teresa – Então o cinema te tomou?

*Ikeda – Sim, me tomou por inteiro. O cinema transformou a minha vida. Eu era isso, né, um menino da periferia, não tinha muitas oportunidades, o cinema foi uma janela que me permitiu descobrir que várias das minhas angústias, várias das minhas questões, eu me sentia sozinho mas eu comecei a perceber a partir do cinema que eu não estava sozinho na minha solidão. Eu acho que a arte e a cultura possuem esse papel, uma forma de auto descoberta, de autoconhecimento. Então a partir do cinema conheci os filmes mais diferentes do mundo, de épocas diferentes, períodos do cinema mudo, cinema japonês, filmes muito diferentes mesmo, que fizeram curiosamente com que eu descobrisse mais sobre mim mesmo. E aí um filme que foi muito importante para mim nesse período foi um filme chamado “Não Amarás” do Kieslowski, um filme polonês dos anos 1990, que eu aluguei na locadora da esquina da minha casa, lá na periferia do Rio de Janeiro, aos 13 anos e a partir dele eu me senti tomado pelo cinema. Assim que acabou esse filme percebi que minha vida nunca mais seria a mesma, era um caminho sem volta.

*Teresa – Além disso o que o cinema fez por você?

*Ikeda – Então, o cinema transformou minha vida me ajudando nesse processo de autodescoberta. Nesse processo de poder entender melhor as minhas fragilidades, as minhas angústias, incertezas, e tentar transformar essa possível fragilidade numa poética, numa outra forma de estar no mundo, então o cinema foi uma forma de autoconhecimento, foi e está sendo, é um processo, de forma contínua, até hoje. Na verdade, de lá para cá, todos os meus movimentos no cinema são nesse sentido de tentar compreender o que é um filme, que é algo assim muito misterioso e tentar descobrir o meu lugar no mundo a partir disso.

*Teresa – Como o surge o crítico de cinema, o Marcelo Ikeda escritor de textos que aprofundam a discussão sobre cinema, que necessidade foi essa?

*Ikeda – Então, como te falei, eu comecei a ver os filmes, a me engajar muito jovem nesse movimento cineclubista, no Rio de Janeiro, na virada dos anos 90 para os anos 2000. Éramos uma geração de jovens que não se reconheciam muito no cinema brasileiro daquele momento, que era o chamado “cinema da retomada”. Nessa época os grandes filmes brasileiros daquele momento, aqueles que ganhavam prêmios, que eram reconhecidos, a gente não se sentia reconhecido nesse cinema. Daí eu participava desses cineclubes que exibiam vídeos, ou seja, os primeiros filmes de alguns realizadores que estavam iniciando em sua realização e eu ficava fascinado por esses filmes. Eram filmes precários economicamente, talvez tecnicamente também, porém nessa precariedade eu via uma força, uma potência. Então eu comecei a escrever sobre esses filmes. Eram filmes totalmente ignorados, desconhecidos, que ninguém notava mas que eu considerava fabulosos. Eles me tocavam. Fiquei impressionado pelo fato deles serem desconhecidos e foi isso que me fez pensar em trazer à tona esses filmes praticamente invisíveis. Eu queria conversar sobre esses filmes e queria que mais pessoas descobrissem esses filmes para ter o mesmo entusiasmo que eu risos. Ou outro entusiasmo que seja rs mas queria compartilhar essa descoberta, como se fosse um tesouro. Então a crítica sempre foi para mim uma forma de valorizar os filmes que eu considero instigantes, mas que passam batido porque são pouco comentados ou menos comentados do que deveriam. Os críticos muitas vezes, elegem meia dúzia de filmes e se concentram nesses, repetidamente, então o meu papel na crítica é justamente tentar jogar luz para vários outros filmes que não recebem dessa mídia mais hegemônica a atenção que outros filmes também merecem, mas que não estão em circuitos de maior visibilidade.

*Teresa – Nesse sentido você é um colaborador, um alavancador do bom cinema, vai atrás de valorizar e trazer à tona aquilo que talvez estivesse condenado ao esquecimento. Um garimpeiro eu diria.

*Ikeda – Precisamos ficar atento à tendência de massificação. São tantos livros produzidos, tantas músicas, tantos filmes e muitas vezes a gente fica sempre vendo e ouvindo alguns poucos artistas.

*Teresa – Então o crítico não é aquele que também destrói o trabalho do cineasta? O seu papel me parece ser bem ao contrário disso. Enfim, como você define o crítico de arte, especificamente o crítico de cinema?

*Ikeda – Na minha visão, ou como costumo trabalhar, o crítico não é aquele que faz julgamento de valor da obra, não é aquele que diz se a obra é boa ou ruim, que hierarquiza a obra, dizendo que um filme é melhor que o outro. O crítico não é aquele que quer ensinar ao cineasta ou ao artista sobre o que ele deveria ter feito, mas sim aquele que procura abrir o pensamento crítico, abrir as possibilidades de leitura, ampliar o debate público sobre o que é o cinema, sobre outros modos de ser, sobre os nossos mais variados brasis. O crítico não é aquele que fecha a leitura, ele não quer ensinar o espectador aquilo que ele deve ver ou que deveria ter visto, ele não quer adestrar o olhar do espectador, ao contrário, o crítico é aquele que abre possibilidades de leitura, de você poder se questionar e se descobrir, enfim, acho que é uma redução pensar que o crítico é só isso, um juiz do gosto, que diz se o filme é bom ou ruim. É algo muito mais interessante, o crítico vai no sentido da autodescoberta, ele lança sementes que fazem o espectador ou leitor ser mais ativo, que ele possa se questionar não só sobre os filmes, ou sobre sua estética e linguagem, mas especialmente sobre ética, sobre modos de ser, sobre o mundo, porque o cinema também é uma porta de entrada para a gente pensar qual é o nosso papel no mundo, que mundo é esse que a gente está vivendo e o que a gente está fazendo com o nosso mundo. O crítico não é só aquele especialista sobre questões estéticas, a linguagem, a lente, câmera, etc, claro que é também sobre isso, o crítico tem que conhecer a linguagem, tem que conhecer o meio, mas a linguagem pela linguagem, eu acho que é muito pouco, o crítico deve compreender esses instrumentos de linguagem, mas sobretudo, para nos fazer pensar qual é o nosso lugar no mundo, acho que esse é o exercício mais belo da crítica de arte.

*Teresa – E o que faz você ser essa pessoa interessada em olhar a sétima arte sobre esse viés? O que te ajudou a se tornar esse ser humano que percebe a arte assim?

*Ikeda – Creio que foi a curiosidade, eu sempre tive uma grande curiosidade, sempre procurei e venho procurando ampliar meus horizontes críticos, e também uma certa inquietude, sempre ficar se questionando “se é isso mesmo”, desconfiar das supostas verdades, daquilo “que se fala por aí” (risos) e buscar desestabilizar os falsos consensos, problematizar o senso comum. Lógico que isso é difícil, sair da nossa zona de conforto. A gente naturalmente embarca numa tendência a se acomodar, e isso é um risco, a gente tem que lutar contra essa tendência, de ver um filme sob as mesmas perspectivas, ir para as nossas bengalas, nossas zonas de conforto, porque o mundo não para, o cinema não para, o tempo inteiro vão surgindo filmes que estão nos desafiando, sempre tem coisas novas para ver e rever. É muito importante também rever filmes. Se você vê uma única vez é importante rever.

*Teresa – Por que é importante rever filmes?

*Ikeda – É importante porque na primeira vez que a gente vê um filme, muitas vezes a gente fica impactado, um tanto anestesiado, torcendo pelos personagens, ou seja, envolvido com a atmosfera do filme. Quando você vai rever o filme, você já então, tem um pouco mais de distanciamento para fazer uma análise um pouco menos à flor da pele. Eu acho legal até fazer essa análise direta, gosto da coisa fenomenológica de fazer uma análise de perto, de escrever sob o impacto do filme, eu sempre defendi a ideia da paixão na análise e no ato da escrita. Tem gente que acha que o crítico é só racional, que ele faz uma análise neutra. Eu sempre defendi a ideia da paixão, o crítico que faz uma análise apaixonada. Ao mesmo tempo é claro que é fundamental um equilíbrio entre essa paixão pelo cinema, pela vida, pelo mundo, mas ao mesmo tempo você tem que ter um rigor na análise, ter um certo distanciamento. Então quando você vai rever um filme, pela segunda ou terceira vez, você fica mais consciente de que elementos o cineasta utilizou para gerar determinados efeitos. Vai poder compreender melhor como certos impactos até mesmo emocionais ou discursivos são gerados pela articulação de certos elementos, aí você vai repensando, reavaliando. E tem também o seguinte, você vê um filme hoje e quando você revê o mesmo filme daqui a cinco anos você já é outra pessoa, o mundo não está mais como antes, o filme também já é outro. Então eu acho que é fundamental esse exercício de rever, não só filmes, mas coisas da nossa própria vida. Ficar revendo nossos roteiros, se questionar a si mesmo, qual é o nosso lugar, eu sempre procurei me questionar, sempre procurei ter esse autoquestionamento. Será que eu estou na zona de conforto, será que estou me acomodando, nesse lugar que é mais confortável para mim, mais fácil? Será que estou vendo esse filme sob o mesmo ponto de vista? Que já é um ponto de vista enrijecido, entendeu? Aprender mais, considerar outras possibilidades, esse é um desafio contínuo, constante e difícil, você sempre se reavaliar, se questionar, e também entender os nossos limites. Quando a gente escreve, se implicar na escrita, se colocar na escrita. É justamente isso, é importante percebermos que a pessoa que escreve sobre um filme não tem como achar que é uma coisa neutra, que não se envolve com a escrita. Ela tem que ver que também é uma pessoa que sofre, que vive, que tem um corpo, que sofre todos os condicionantes desse mundo, e que isso influencia sua análise. O crítico não pode estar fora do mundo para poder escrever.

*Teresa – Sim, a gente também é uma composição, muitas coisas nos compõem e nos determinam. Somos uma construção, não é mesmo?

*Ikeda – Totalmente! E é isso que nos faz ricos e nos faz, com nossas dores e delícias, problemas e precariedades…acho que é algo importante, honesto da crítica quando o crítico assume esse lugar, esse lugar de fala, digamos assim “entre aspas”, com todas as suas dificuldades e fragilidades, quando um crítico se compromete no ato da escrita…

*Teresa – O meio cinematográfico não é um tanto elitizado, ou seja, para poucos?

*Ikeda – Ele é sim. Eu acho que o meio artístico em geral, a cultura e a arte, produzir cultura e arte no Brasil, consumir cultura e arte no Brasil é algo que historicamente sempre foi considerado elitista. O cinema também é isso, porque no cinema se cria essa ilusão de que precisa se ter dinheiro para fazer um filme, ter mercado e tudo isso. Ao mesmo tempo, eu sempre falo para meus alunos assim: ”Se hoje o cinema é elitista, eu considero que vinte anos atrás, quando eu iniciei, ele era ainda mais elitista do que é hoje, porque hoje com o digital, com as tecnologias digitais, você pode fazer um filme no celular, você pode fazer críticas, eu por exemplo, não sou jornalista, eu comecei a escrever na Internet, eu abri um site, antes você só podia escrever em jornais, em revistas, eu sou de uma geração que começou a escrever direto na Internet. Só para concluir, a produção e consumo de cinema hoje ainda são elitistas, mas quando eu comecei no cinema, há 20 anos era bem mais elitista, então se a gente tem alguma esperança, tomara que daqui a 20 ou 40 anos a gente possa dizer também, que é bem menos elitista do que é hoje.

*Teresa – Mas você vê esse movimento sendo feito, de democratização do cinema?

*Ikeda – Vejo sim, eu acredito nesse movimento e vejo sim um movimento nessa direção. Mas eu acho que esse movimento poderia dar passos mais acelerados, ele ainda é relativamente lento, mas eu vejo sim um movimento de redução desse elitismo. E espero que com o tempo haja uma aceleração, um aprofundamento desse movimento. Hoje mais pessoas estão fazendo cinema, as periferias, os interiores, também pessoas periféricas, antes excluídas, invisibilizadas, historicamente e socialmente excluídas.Poderiam ter muito mais, mas hoje é bem mais do que antes.

Teresa – Sobre a sua estadia no Nordeste, Ceará. Você é do Rio, qual é a sua conexão com o Nordeste?

Ikeda – Eu sou uma pessoa do Rio, mas eu conheci alguns amigos cineastas do Ceará, cheguei a dar umas palestras como crítico, alguns cursos em Fortaleza. Daí em 2010, abriu o curso de graduação em cinema na Universidade Federal do Ceará. Isso é importante falar, porque eu fiz cinema na UFF, e quando eu entrei no curso em 2000, só tinham três universidades públicas de cinema. Eram só a UFF no Rio, a USP em São Paulo e a UNB em Brasília. No Nordeste, nenhuma; no Sul, zero; no Norte, também zero. Então veja, era muito elitista. A partir de 2007, começaram a surgir cursos de cinema no Nordeste por causa do REUNI, programa de expansão das universidades públicas federais, no governo Lula. UFPE, UFPB, UFRB no interior da Bahia por exemplo, entre várias outras, começaram a surgir a partir daí. Agora tem UFRN, UFS, várias outras, e também universidades privadas e outros cursos livres, públicos e privados. Em 2010 surgiu o Curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará. E aí teve um concurso e eu fui aprovado nesse primeiro bloco de concursos que aprovou essa primeira leva de seis a oito professores que contribuíram para ajudar a montar o curso. Eu trabalhava na ANCINE, Agência Nacional de Cinema, pois eu sou do Rio, nascido e criado no Rio, já era concursado, trabalhava num órgão público, mas eu deixei o Rio, deixei a ANCINE, e mergulhei nesse desafio de expandir o cinema no Nordeste, no Ceará, dentro da Universidade, daí eu embarquei nessa aventura.

*Teresa – Você falando do Ceará me fez lembrar de Pernambuco. A gente quando pensa em cinema no Nordeste, pensa logo em cinema pernambucano. Por quê? E os outros estados? A sua área de interesse como crítico contempla todos os estados em sua produção? Na verdade, queria que comentasse se o cinema conta o país que a gente vive, expõe ele, desnuda ele. Se o cinema revela pra gente as nossas inadequações.

*Ikeda – Na verdade, eu escrevo sobre cinema em geral. Sobre várias cinematografias. Mas a minha área maior de pesquisa é sobre cinema brasileiro. E eu me interesso muito, como já estava falando, sobre outros tipos de cinema, aqueles não hegemônicos. Existe uma concentração no eixo Rio e São Paulo, uma concentração que é cultural e é também econômica etc. Então quando optei por morar no Nordeste eu fui com vontade de conhecer outros nordestes, uma cultura rica e ampla ao extremo, mas muito estigmatizada. Por muito tempo a cultura e o cinema no Nordeste ficaram muito concentradas nesse lugar do regionalismo clássico, ligado apenas à falta, a elementos como a seca, o sertão, o cangaço, e eu tenho interesse em pensar o Nordeste para além desses estereótipos associados à região. Vejo outras possibilidades de representação do Nordeste, dos espaços geográficos e humanos do Nordeste. O cinema nordestino é muito rico, eu ando publicando muito sobre esse cinema. Sobre o cinema pernambucano, como você disse, que tem uma marca muito forte, mas esse cinema é feito em Recife. A gente sempre se refere a produção cinematográfica no Nordeste tendo em vista muito mais a produção de três cidades: Recife, de Fortaleza e Salvador. Mas o Nordeste também tem outras cidades e também o interior e com a transformação digital a gente tem filmes sendo produzidos no Brasil inteiro, no Nordeste inteiro, então eu me interesso muito pelo cinema produzido nos interiores. Hoje, por exemplo, o Rio Grande do Norte e Alagoas, são dois estados que estão crescendo muito em sua produção. Alagoas daqui a dois ou três anos, você vai ver alguns longas metragens, alguns curtas metragens que já estão surgindo e com muita potência sendo exibidos em festivais nacionais e até mesmo internacionais. O cinema paraibano, outro exemplo, é maravilhoso, mesmo com muito poucos recursos eles conseguem produzir coisas fantásticas. O problema é que a gente desconhece a nossa produção. E esse é um desafio muito grande. O cinema brasileiro produz coisas muito interessantes, mas muito pouco conhecidas. As vezes participam de um festival ou outro…a gente tem esse desafio também do mercado, da distribuição, as salas de cinema são todas em Shoppings, agora tem a Netflix, a televisão, ou seja, a gente tem poucos espaços independentes, os nossos grandes filmes circulam pouco. E isso é um grande desafio, criar espaços para que o público consiga interagir, no interior, nas periferias, consiga ter acesso a essa produção.

*Teresa – As escolas tinham que incluir o cinema em suas propostas pedagógicas e isso devia ser lei, cursos de cinema nas escolas de ensino médio e fundamental.

*Ikeda – Já é lei cinema nas escolas mas não vai pra frente de fato. Investir também na formação de professores, numa rede cineclubista. A gente precisa investir de forma radical em formação de público. O dinheiro está muito concentrado na produção e pouco relativamente na distribuição dos filmes já produzidos e especialmente na formação de plateia, na formação de novos públicos, no estímulo ao pensamento crítico. É por isso que gosto muito de ir aos festivais que são pontos de encontro, onde os artistas se conhecem, trocam ideias e também estimulam debates com o público.

*Teresa – Qual seria o papel do cinema, além desse que a gente aplaude, ou seja, o de polemizar, denunciar, de trazer questões importantes à tona, de buscar aquilo que está escondido, ir para periferias, escancarar mesmo a sociedade de classes em que a gente vive, sem censura…

*Ikeda – Eu creio que o papel do cinema e a arte como um todo, o papel fundamental é mostrar que nós humanos não somos meras máquinas de reprodução do capital, porque a gente está num mundo cada vez mais acelerado, onde as pessoas acham que a solução de suas vidas é trabalhar mais. É ter mais dinheiro, é trocar seu celular, trocar seu carro, comprar o tênis tal, portanto, o papel do cinema, da arte e da cultura é expandir nossa experiencia sensível. É fazer com que a gente não se torne meros robôs de reprodução do capital, mas que a gente possa ser tocado por coisas simples. Que a gente possa sentar numa praça e ouvir o movimento dos pássaros, porque a gente está num mundo em que não ouvimos mais o movimento dos pássaros, só o barulho dos carros, das britadeiras construindo prédios. Então o papel do cinema e da arte é fazer com que a gente não perca essa sensibilidade. O segundo ponto é fazer com que a gente consiga conviver com as diferenças, porque o mundo está tomado pela massificação, pela homogeneização. Então acho que o papel do cinema, da arte e da cultura é fazer a gente perceber que cada pessoa é diferente, com diferentes formas de pensar, de agir e de ser, fazendo a gente aprender sobre singularidade, que essa é a riqueza da nossa sociedade, então o cinema vem de encontro a autodescoberta. Que cada pessoa pode ser ela mesma, que cada pessoa é diferente, e que não há problema nisso. E esse é o papel maior do cinema. O nosso grande projeto deve ser sempre a busca pela liberdade.

*Teresa – Outros festivais estão acontecendo, além de Gramado e Tiradentes? Cresceu o número de festivais? Quais são os mais antigos?

*Ikeda – O Festival de Gramado e o de Brasília são os mais antigos e tradicionais do Brasil, dedicados exclusivamente ao cinema brasileiro. Eles já têm 50 anos. Tiradentes, agora neste ano, foi a 28ª edição. Tem o Festival do Rio, tem a mostra de São Paulo, tem outros festivais, como o Cine PE, em Pernambuco, o Guarnicê no Maranhão, o Cine Ceará em Fortaleza, e tem também muitos outros festivais, por exemplo, aqui em Campos do Jordão está fazendo 10 anos, um festival do interior. Quer dizer, tem muitos outros festivais, uns que tem mais mídia, menos mídia. Por exemplo, Campos do Jordão é uma cidade que não tem uma sala de cinema. Tem muitas cidades que só tem sala de cinema em shopping. Os cineclubes também são pontos importantes para uma exibição coletiva de cinema, as pessoas não vêem os filmes só em sua casa, no Netflix, mas vêem o filme coletivamente numa sala de cinema.

*Teresa – Sobre os festivais de cinema, a gente pode dizer que eles têm um papel de inclusão, não é?

*Ikeda – Sim. E a cultura também é um hábito. Se a pessoa não tem o hábito de ir ao cinema, ao museu, às vezes por não ter uma companhia para ir, acaba ficando na sua zona de conforto. Ela tem o seu trabalho, vai para casa, fica no seu celular, on seu joguinho, fica vendo Netflix. Igual a todos nós, também nós do setor da cultura precisamos ampliar as nossas zonas de conforto. Se tivesse um festival de dança, será que a gente do cinema iria? Entendeu?

Teresa – E sobre o Festival “Curta Campos do Jordão”? O que você teria a dizer sobre esse festival, onde eu tive a satisfação de te conhecer. Qual foi o seu papel nesse evento que já se repete há dez anos? Preciso dizer que somente a Arte poderia me aproximar de pessoas e de conversas tão geniais como essa que estamos tendo.

Ikeda – Eu conheci o trabalho que o Cervantes e o Paulo vêm desenvolvendo por meio do Cineclube Araucária, que se reúne toda terça-feira para debater filmes. Era presencial em Campos do Jordão, mas, com a pandemia, passou a ser online, e eu de Fortaleza passei a participar quando eles começaram a debater o cinema japonês dos anos 1950 e 1960. Passaram Filhos de Hiroshima e Ilha Nua, dois filmes do Kaneto Shindo, eu soube e disse “puxa, em pleno 2022 e tem um grupo debatendo esses filmes, filmes do cinema japonês dos anos 1950, quero ver quem são!!!” (risos). Depois disso fui conhecendo as pessoas e fui convidado pelo festival, para lançar meus livros, para dar palestras, e agora como membro do júri. O Cervantes e o Paulo são muito apaixonados pelo cinema, e vêm desenvolvendo um trabalho muito bacana, formando uma rede afetiva de pessoas que passaram a desenvolver laços afetivos estimulados pelo cinema, pela vontade de ver e conversar sobre cinema. Isso é muito importante.

*Teresa – Finalizando, eu não poderia deixar de te perguntar sobre a premiação mais glamourosa do cinema, o OSCAR. O que você pensa dessa premiação?

*Ikeda – O problema é quando a gente pensa que a solução do cinema brasileiro é o Oscar. É maravilhoso o nosso cinema ser reconhecido nos festivais importantes, Veneza, Berlim, Gramado, Campos do Jordão, no Oscar, ou seja, em todos os lugares, isso é bacana, um reconhecimento artístico, não há problemas nisso. O problema que eu vejo é quando as pessoas pensam que essa premiação é o maior sinal de sucesso, tipo, parece que agora que chegamos ao Oscar é que estamos dando certo. Isso é que me preocupa. Sucesso não precisa ser algo como ganhar prêmios, o sucesso num trabalho artístico é conseguir ter uma trajetória coerente, contínua, um prêmio é bacana, mas eu acho que na arte e na cultura onde existe a ideia de abrir nossos corações e mentes, não é saudável pensar em algo competitivo, em notas em hierarquização, o sucesso não pode ser medido dessa forma, entendeu? O sucesso do artista é perseverar e a longo prazo. Essa coisa de valorar a arte, muitas vezes é uma estratégia de mercado. O Oscar tem sem dúvidas efeitos positivos para o cinema brasileiro, mas nosso cinema precisa ser percebido pela nossa sociedade para muito além dele.

IKEDA com Lucélia Santos, Dani Nefusse e Mateus Brito

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3 Comentários

  1. Tive uma experiência do terceiro grau ao entrevistar Marcelo Ikeda, de um valor enorme esse moço. Aliás essa experiência diz respeito ao que a arte como um todo faz. Ela nos envia diretamente para o mundo do maravilhamento. Grata demais! Obrigada Marcelo, gratidão entrementes.

  2. É isso mesmo, o crítico é um éducador ! Bravo! Marcel Ikeda, à “curiosidade” é essencial ! Excelente entrevista ! Obrigada ! Irina Sabatier

  3. Excelente! O Ikeda tem uma postura pedagogia, suas críticas são verdadeiras aulas sobre cinema
    Obrigada!

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