Ervas daninhas, luares do sertão
Foi um reencontro amoroso com o Brasil, através da seleção de composições de várias fases de Chico, cada qual impregnando a história de um público sedento de Brasil, que lotou o teatro.
Eram milhares de pessoas, órfãs não propriamente de Chico, mas de Brasil, que reagiam entusiasticamente a cada música, como para espantar os demônios que já se apossaram do país conspurcando o verde e amarelo com suas caras de zumbis abobados, saindo dos porões do inferno.
Passou pelo show grande parte do repertório intemporal de Chico. Mas o momento mais intenso foi quando Chico e Mônica interpretaram “Maninha”, a música que melhor antecipou o que se passaria com o Brasil.
A letra narra a história de dois irmãos, após o abusador ter entrado em suas vidas, a saudade da vida perdida, a esperança de um dia ele ir embora.
Estava ali, o Brasil que começou a ser ensaiado a partir do “mensalão”, que se consolidou com a Lava Jato, o país do ódio, da destruição do adversário, tratado como inimigo. Até que o abusador tomou conta de tudo, as milícias conquistaram o poder, exterminando doentes, índios e abandonando crianças, destruindo sistemas de ensino, redes de proteção social.
A música aumentou em vários graus a emoção que já cobria a plateia. Não foi necessária nenhuma explicação, nenhum grito de guerra, mas apenas a solidariedade barulhenta de irmãos que se vêem libertados do abusador. E, na saída, a dura realidade batendo de volta.
Se um dia ele vai embora, prá nunca mais voltar, não será por agora. O abusador não é a figura caricata, pornográfica de Bolsonaro e seus filhos, da fada madrinha Michele, com suas maçãs envenenadas de manipulações religiosas, nem a bruxa Damares medindo o dedo de curumins enjaulados.
O abusador, agora, está em cada esquina, depois que uma campanha odiosa de mídia abriu as portas dos túmulos, permitindo que os zumbis escapassem das profundezas e invadissem definitivamente a vida brasileira.
É pior que nos tempos da ditadura.
No início da ditadura você encontrava alguns delatores no seu entorno, mas era como se os porões fossem segregados da sociedade, permitindo a honestos pais de família fingir que não ouviam os gritos dos torturados pelos amigos próximos de Bolsonaro.
Agora, não. O espectro do abusador entrou na cabeça da velhinha rezadeira, do ruralista alucinado, normalizou a atuação dos assassinos reunidos em Clubes de Atiradores e Caçadores, transformou jornalistas em delatores – alguns deles, agora, tentando refazer o caminho de volta à civilização. Fez com que a sobrinha pia, que ia todos os domingos na missa, passasse a desejar a morte de esquerdistas, petistas, comunistas ou qualquer ista injetado em sua cabeça. Jogou no mesmo ambiente médicos imbecilizados, arruaceiros de periferia, vocações assassinas esperando a primeira oportunidade para cumprir a sua sina.
Definitivamente, o abusador não foi embora. Será um árduo trabalho empurrá-los de volta ao túmulo, porque não tem cara, não tem RG, é um sentimento amargo, pútrido, plantado por anos na cabeça do país, como um ectoplasma de Freddy Krueger.
Será uma dura caminhada, mas, pelo menos, sabemos o caminho. E as migalhas de pão jogadas pela estrada, para encontrar o caminho da volta, são as canções de Chico, Milton, Caetano, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Angelino de Oliveira, Adoniran.
Afinal, um país que construiu a mais bela música do planeta, haverá de encontrar forças para recuperar as lembranças da fogueiras, dos balões, dos luares dos sertões, e, em um ponto qualquer do futuro, voltar a ter orgulho de si. ”
Texto do jornalista Luis Nassif .
Coincidências? Pero que las hay, las hay …
Sinto que o espírito do tempo, no caos, emerge, e ousa em prenúncios e sinergias.
O final de um poema que fiz em 2017, do livro A noite e o meio, Editora Córrego, 2019, confessa que uma cegueira seria bem vinda posto que não verei meu país renascido.
Esse é o bônus e o ônus dos 70 anos: saber o que há, e saber o que não haverá.
Na velhice só existe o agora.
E o agora brasileiro são somente as esperanças de que as feridas imensas que carregamos sejam tratadas, cuidadas, cicatrizadas. E que aos poucos não nos deixemos sucumbir mais pela destruição fria pela qual passamos, sem que nada nem ninguém interrompesse os quatro anos ( sem contar os (des) arranjos dos anos anteriores) de aniquilamento de tudo o que era nosso.
Sabemos que há forças obscuras entre nós que cultivam a morte provocada, como fantasmas do mal contaminando nosso ânimo.
Mas concordo com Nassif: as migalhas dos nossos divinos Milton, Chico, Caetano, Gil, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Adoniran, Belchior, Itamar Assunção e tantos outros e outras, podem fazer milagres.
Assim seja.
Ps:
Vale também prestar muita atenção à canção Caravanas. Perfeita. Traz a eterna diáspora africana sob a batida do funk, as prisões como porões de navios negreiros, e um ar de O Estrangeiro de Camus no refrão e sua sequência, quase fantástico:
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar”
Boa noite
Tanta gente boa fazendo. Estes livros estão sendo publicados. E não estamos dando milho aos pombos. E que novos nomes surjam nesta lista dos grandes mestres da canção.
Sigamos, em caravanas, capinado ervas daninhas, em busca do sol que nos alumia, que nos aqueça a moleira e não nos estoura as veias…
Lindo o seu texto, o do Nassif, a mistura dos dois, lindo o Chico, acho linda Caravanas e adoro uma versão da Orquestra Mundana Refugi, gravada na voz da Paula Mirhan e com outras vozes de diversas partes do mundo.
Queridos amigos poetas que me privilegiam com sobrevidas, gratidão. Que bom cultuarmos as mesmas belezas, mesmo que choremos juntos.