Ervas daninhas, luares do sertão

 

Ervas daninhas, luares do sertão

Por Beth Brait Alvim
Ontem estivemos ouvindo a play list do show do Chico. Foi um aquecimento dos tambores e do coração pois,  dia 31, dia do golpe militar, iremos vê- lo.
Quando cantarolei ontem a canção Maninha ouvindo a playlist, com o Chico, fui pega por um choro compulsivo, profundo, que parecia antigo, muito antigo, e era ao mesmo tempo novo, muito novo. Maninha foi composta em1977, dois anos depois da morte do Herzog, período em que estava sendo perseguida por agentes do DOPS, para dizer pouco.
Eu não tinha lido ainda a matéria do Luís Nassif, que acabei de ler agora, sobre a estréia do show “Que tal um samba”, ontem, em São Paulo. E sobre a canção Maninha, que sempre me fez chorar. E desta vez,  profundamente.
“Foi o maior show de Chico Buarque que assisti, com a participação majestosa de Mônica Salmaso.
Foi um reencontro amoroso com o Brasil, através da seleção de composições de várias fases de Chico, cada qual impregnando a história de um público sedento de Brasil, que lotou o teatro.
Eram milhares de pessoas, órfãs não propriamente de Chico, mas de Brasil, que reagiam entusiasticamente a cada música, como para espantar os demônios que já se apossaram do país conspurcando o verde e amarelo com suas caras de zumbis abobados, saindo dos porões do inferno.
Passou pelo show grande parte do repertório intemporal de Chico. Mas o momento mais intenso foi quando Chico e Mônica interpretaram “Maninha”, a música que melhor antecipou o que se passaria com o Brasil.
A letra narra a história de dois irmãos, após o abusador ter entrado em suas vidas, a saudade da vida perdida, a esperança de um dia ele ir embora.
Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas canções
Se lembra quando toda modinha falava de amor
Pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegou
Se lembra da jaqueira
A fruta no capim
Dos sonhos que você contou pra mim
Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim
Se lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisou
Se lembra do futuro
Que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciou
Mas não me deixe assim, tão sozinho
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Prá nunca mais voltar

Estava ali, o Brasil que começou a ser ensaiado a partir do “mensalão”, que se consolidou com a Lava Jato, o país do ódio, da destruição do adversário, tratado como inimigo. Até que o abusador tomou conta de tudo, as milícias conquistaram o poder, exterminando doentes, índios e abandonando crianças, destruindo sistemas de ensino, redes de proteção social.
A música aumentou em vários graus a emoção que já cobria a plateia. Não foi necessária nenhuma explicação, nenhum grito de guerra, mas apenas a solidariedade barulhenta de irmãos que se vêem libertados do abusador. E, na saída, a dura realidade batendo de volta.
Se um dia ele vai embora, prá nunca mais voltar, não será por agora. O abusador não é a figura caricata, pornográfica de Bolsonaro e seus filhos, da fada madrinha Michele, com suas maçãs envenenadas de manipulações religiosas, nem a bruxa Damares medindo o dedo de curumins enjaulados.
O abusador, agora, está em cada esquina, depois que uma campanha odiosa de mídia abriu as portas dos túmulos, permitindo que os zumbis escapassem das profundezas e invadissem definitivamente a vida brasileira.
É pior que nos tempos da ditadura.
No início da ditadura você encontrava alguns delatores no seu entorno, mas era como se os porões fossem segregados da sociedade, permitindo a honestos pais de família fingir que não ouviam os gritos dos torturados pelos amigos próximos de Bolsonaro.
Agora, não. O espectro do abusador entrou na cabeça da velhinha rezadeira, do ruralista alucinado, normalizou a atuação dos assassinos reunidos em Clubes de Atiradores e Caçadores, transformou jornalistas em delatores – alguns deles, agora, tentando refazer o caminho de volta à civilização. Fez com que a sobrinha pia, que ia todos os domingos na missa, passasse a desejar a morte de esquerdistas, petistas, comunistas ou qualquer ista injetado em sua cabeça. Jogou no mesmo ambiente médicos imbecilizados, arruaceiros de periferia, vocações  assassinas esperando a primeira oportunidade para cumprir a sua sina.
Definitivamente, o abusador não foi embora. Será um árduo trabalho empurrá-los de volta ao túmulo, porque não tem cara, não tem RG, é um sentimento amargo, pútrido, plantado por anos na cabeça do país, como um ectoplasma de Freddy Krueger.
Será uma dura caminhada, mas, pelo menos, sabemos o caminho. E as migalhas de pão jogadas pela estrada, para encontrar o caminho da volta, são as canções de Chico, Milton, Caetano, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Angelino de Oliveira, Adoniran.
Afinal, um país que construiu a mais bela música do planeta, haverá de encontrar forças para recuperar as lembranças da fogueiras, dos balões, dos luares dos sertões, e, em um ponto qualquer do futuro, voltar a ter orgulho de si. ”

Texto do jornalista Luis Nassif .

Coincidências? Pero que las hay, las hay …

Sinto que o espírito do tempo, no caos, emerge, e ousa em prenúncios e sinergias.

O final de um poema que fiz em 2017,  do livro A noite e o meio, Editora Córrego, 2019, confessa que uma cegueira seria bem vinda posto que não verei meu país renascido.

Esse é o bônus e o ônus dos 70 anos: saber o que há, e saber o que não haverá.

Na velhice só existe o agora.

E o agora brasileiro são somente as esperanças de que as feridas imensas que carregamos sejam tratadas, cuidadas, cicatrizadas. E que aos poucos não nos deixemos sucumbir mais pela destruição fria pela qual passamos, sem que nada nem ninguém interrompesse os quatro anos ( sem contar os (des) arranjos dos anos anteriores) de aniquilamento de tudo o que era nosso.

Sabemos que há forças obscuras entre nós que cultivam a morte provocada, como fantasmas do mal contaminando nosso ânimo.

Mas concordo com Nassif: as migalhas dos nossos divinos Milton, Chico, Caetano, Gil,  Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Adoniran, Belchior, Itamar Assunção e tantos outros e outras, podem fazer milagres.

Assim seja.

Ps:
Vale também prestar muita atenção à canção Caravanas. Perfeita. Traz a eterna diáspora africana sob a batida do funk, as  prisões como  porões de navios negreiros, e  um ar de O Estrangeiro  de Camus no refrão e sua sequência, quase fantástico:

“Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar”

4 Comentários

  1. Boa noite

    Tanta gente boa fazendo. Estes livros estão sendo publicados. E não estamos dando milho aos pombos. E que novos nomes surjam nesta lista dos grandes mestres da canção.

  2. Sigamos, em caravanas, capinado ervas daninhas, em busca do sol que nos alumia, que nos aqueça a moleira e não nos estoura as veias…

  3. Lindo o seu texto, o do Nassif, a mistura dos dois, lindo o Chico, acho linda Caravanas e adoro uma versão da Orquestra Mundana Refugi, gravada na voz da Paula Mirhan e com outras vozes de diversas partes do mundo.

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