Um projecto de dimensão social, artística e ecológica, contado na primeira pessoa pelo seu mentor
Raúl Jorge Resende Rosário (conhecido profissionalmente como Raúl Rosário) é um ator angolano de cinema, teatro e telenovelas (Televisão Pública de Angola e Elinga Teatro).
Nascido em Benguela, Raúl é também praticante de capoeira, encenador e percussionista, com preocupações ambientais concretas que exprime através de projetos que concebeu, executa, apoia ou divulga, e que visam a melhoria de condições das populações, sobretudo rurais, em Angola, numa lógica de respeito e interação saudável com o ambiente.
Mas não é sobre o ator que falaremos hoje, mas sim sobre o cidadão empenhado e os seus projetos ambientalistas e de dimensão social na comunidade Boa Esperança (Bengo, Angola), num terreno herdado de seu pai, Carlos Emanuel de Barros Rosário, que lhe transmitiu o gosto pelo campo, como nos confidencia. “Era um local onde os técnicos agrários faziam experiências. Lembro que se chama Boa Esperança porque um médico foi fundador de um posto médico local numa fazenda de dendém; a casa do médico e o posto ainda estão lá. Seria interessante saber quem é esse médico. O nome não sei mas ando a investigar pois o soba meu amigo que me contou essa história já morreu”.
Na verdade tomei conhecimento deste projeto pela divulgação recente feita pelo próprio Raúl nas redes sociais. De imediato reagi com uma avalanche de perguntas desordenadas, movida pela curiosidade: “Fala-me um pouco do Kimbo Kuia. Em que consiste esta iniciativa, desde quando existe, o que já foi feito, o que falta fazer, quem são os intervenientes e destinatários, que tipo de apoios existem ou precisam. Como são as construções, quem executa a obra, quem faz os projetos, localização etc. O teu post é cativante, acredito que muitas outras pessoas se vão interessar”.
De um diálogo informal nasceu uma inesperada entrevista em forma de conversa, estruturada ao sabor das respostas.
Raúl: “ Começo por dizer que Kimbo Kuia foi assim batizado por Maria Luísa Ferreira Resende (Zeza, a Mãe). É um espaço de 5ha separado por caminhos, onde em 2010 construímos a primeira casa, escritório, arrecadação, wc, tudo em adobe[1], após várias tentativas. Hoje sabemos que não é bom rebocar com cimento[2]. Foi no tempo das vacas gordas, a casa custou cerca de 350 000 Kz, na altura equivalente a 3 500 USD, tudo feito por mim, pela Mãe e pela comunidade, fomos aperfeiçoando as técnicas. Nos primeiros anos apostámos na agricultura mas a crise de 2015 nos tirou esse sonho pois uma bomba de água que custava 50 000 Kz, hoje custa 500 000. O rio Dande está a 1km e há lagoas mas a comunidade está a sofrer devido às poucas políticas de ajuda. Vamos recordar que a Boa Esperança está localizada na margem sul do Dande, no Porto Quipiri (comuna das Mabubas, município do Dande, Bengo). Há uma fuga de jovens pois não há oportunidades. Foi o que me levou a pensar nesse projeto, que inclui levar os meus colegas praticantes de capoeira, fazer camping, escalada, passeios, teatro, falar com a comunidade …enfim, embarcar numa aventura de quinta pedagógica trazendo algum saber e levando outro”.
Raúl vai desfilando fotos, entusiasmado.
“Numa altura também delas gordas (as vacas) conseguimos painéis solares alemães bons, alguns duram até hoje. A luz passa a 800 metros mas a crise parou tudo”.
“Passamos bons momentos no Kimbo Kuia. Já houve acampamento dos escuteiros, retiro de Capoeira Zumbimba, da Abadá-Capoeira[3].Tentamos e fazemos a nossa parte. A parte da permacultura[4] aos poucos vou aprendendo e juntando técnicas; está entre nós o Bruno que é especialista em bioconstrução em Portugal, ambientalista e ativista, e vamos fazer uma oficina a anunciar em breve.
Luísa: “Raúl, temos que pensar em dar uma sacudidela a isso. No meu entendimento existe sempre algures uma hipótese de financiamento, é só uma questão de os doadores definirem os projetos como prioridade”.
Raúl: “É isso! Apoios, há anos que andamos a lutar para nos porem um
pouco da eletricidade e água que passa a 800 metros. Sempre o mesmo entra administrador, sai administrador: os projetos vão para a gaveta ou são rasgados. É um trauma. Fazemos tudo sozinhos. Por isso decidi fazer este post. Mas às vezes olham para nós como se estivessem a ver um filme. É real”.
Concordo com o Raúl. O imediatismo das sociedades modernas e a volatilidade da informação faz com que apenas se leiam os títulos das notícias. Porém, se o tema for do vosso interesse e pensarem em apoiar esta ideia de alguma maneira, a nível institucional, empresarial ou particular, não hesitem em contactar o seu mentor. Divulgar e contribuir com conhecimento também é apoiar.
Boa sorte à comunidade da Boa Esperança. É verdade. O Kimbo Kuia.
GLOSSÁRIO:
Kimbo: aldeia, povoado (umbundo).
Kubico: corruptela de “cubículo”; casa (Angola).
Kuiar: agradar (Angola).
Ondjango: espaço aberto, casa de conversa, de reunião, de hospedagem, de partilha de bens/refeição/serviços, de educação/iniciação sociocultural, de entretenimento. Lugar de encontro (umbundo).
Veja também:
https://www.facebook.com/raul.j.rosario
https://www.facebook.com/RAUL-Do-Rosario-474300082653560/
[1] O adobe é um material usado na construção civil. É considerado um dos antecedentes históricos do tijolo de barro e o seu processo construtivo é uma forma rudimentar de alvenaria. Adobes são tijolos de terra crua, água e palha e algumas vezes outras fibras naturais, moldados em formas por processo artesanal ou semi-industrial.
[2] Impactos ambientais: as fábricas de cimento são responsáveis por impactos ambientais relevantes.
[3] Abadá-Capoeira é uma instituição de utilidade pública com representantes em todo território brasileiro e em mais de 60 países, divulgando a arte da capoeira e a cultura brasileira.
[4] Permacultura: Sistema inspirado nos ecossistemas naturais, que visa a construção de comunidades humanas ecológicas ou de sistemas agrícolas estáveis, equilibrados, auto-suficientes e que causem reduzido impacto ambiental.
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