por Gustavo Souza Silva
“Ele é uma contradição ambulante, parte verdade e parte ficção.” – Kris Kristofferson
Há décadas o mundo conheceu o Johnny Cash, talvez você também já tenha escutado o trabalho dele. Quem nunca escutou pelo menos uma vez You are my Sunshine? Uma animada canção dele, que pelo que soube, é tocada até em alguns lugares quando é o dia das mães – uma digníssima canção para este dia, eu diria. Mas enfim, esta canção é um dos reflexos da bela vida que este homem teve, para muitos ele foi uma lenda, eu sou um dos que dividem desta opinião, mesmo antes de chegar a tal obra, e foi por tal obra que o vi como algo a mais que uma lenda, como um ser humano. Um relato da extraordinária vida de tal artista – e que vida!
Este livro foi escrito em meados de 1997, ano em que contamos com um narrador já cansado, mas não parado, que continuou em sua jornada narrativa enquanto viajava para seus shows e enquanto estava em seus períodos de descanso pós-turnê. Aqui temos dois protagonistas, que trocam constantemente de papeis, algo que dá certa magia à obra. Um deles é o Cash, o mais renomado artistas de Country que o mundo já conheceu, que após conhecer seu destino, comprar seu violão e ascender aos prazeres e problemas da fama, tornou-se um nome premiado e respeitado por todos. E o outro protagonista é o John, um narrador contemplativo, um homem que consegue olhar para uma fazenda e lembrar-se com carinho de tudo o que já ocorrera lá. É o que sobrou da lenda, um homem que carregou em seus quase 70 anos de vida uma história fantástica – não só sobre ele, mas sobre outras grandes pessoas, e que dispôs de seu tempo para contar tudo neste livro, colocando em suas palavras um toque contemplativo que é um deleite para qualquer fã de suas músicas. Uma mesma pessoa, mas dois personagens.
O trecho anterior pode ser um pouco contraditório, mas é nada mais do que a realidade. Em certo momento do livro ele mesmo relata algo sobre isso, como é denotado neste trecho em que ele cita sua esposa, June Carter: “June reconhece que opero em vários níveis, então ela nem sempre me chama de John. Quando estou paranoico ou beligerante, ela diz: – Vai embora, Cash! Está na hora do Johnny aparecer. Cash é o nome que ela dá à estrela, ao ególatra. Johnny é o nome de seu companheiro de brincadeiras.”. Abro até um sorriso ao falar da June neste texto, ela foi uma grande mulher com uma grande, e por conhecer o Johnny Cash melhor do que ninguém, o tratarei nesta resenha assim como ela o tratava, diferenciando quem é o contemplador e quem é o artista.
Autobiografia
Mas voltando à obra, não há nada mais satisfatório em um livro do que uma boa narrativa, não importando em que pessoa o narrador esteja situado. Quando leio Tolkien, por exemplo, sua narrativa me vem como uma sinfonia inteira para os meus ouvidos… aquela canção que é sempre bom ouvir novamente. Meu caro leitor, a narrativa que o Johnny colocou em sua biografia não me soou como uma sinfonia, ecoando pelos meus ouvidos enquanto expresso um sorriso, mas foi como sentir o aroma da natureza. Aquele cheiro que sentimos quando fazemos trilha ou dormimos em alguma fazenda, imagino que saiba do que falo. Embora o livro tenha sido escrito com o auxílio do Patrick Carr, um jornalista amigo do Johnny, as palavras nele contidas ainda foram feitas pela mesma mão que escreveu tantas canções maravilhosas. Se eu tivesse que dar apenas um adjetivo à escrita do Johnny, eu diria que é lírica. Há certos momentos na obra em que ele escreve de uma forma tão bela e tão natural, que parece que estamos ao lado do Johnny. Como é denotado no trecho a seguir, que ao lê-lo eu juro que fiquei com os olhos brilhando:
“Sou grato por este par de sapatos confortáveis nos meus pés. Gosto dos meus sapatos. Sou grato pelos pássaros. É como se cantassem só pra mim quando me levanto, pela manhã: “Bom dia, John. Você conseguiu, John”. E o primeiro raio de sol: sou grato por sobreviver à noite para vê-lo. Sou grato por não ter uma doença terminal, por ter uma saúde razoável, por poder levantar de manhã, descer para tomar café e depois caminhar pelas trilhas da floresta e sentir o cheiro das flores – os jasmins, as clematites, as orquídeas.”
Este trecho está situado logo no início do livro, para evitar revelar as cenas mais marcantes, como uma envolvendo uma intervenção familiar contra seu vício pelas anfetaminas, uma cena que toca fundo no coração, mas por este trecho creio que o lirismo das palavras deste grande homem esteja evidente. Apenas quem leu a obra – ou sabe da história do Johnny – sabe o porquê de tal postura em relação à natureza e às coisas simples da vida. Ele pode ter sido um grande homem, marido e artista… Mas ainda é apenas um homem, um homem que carrega muitos erros de seu passado, e isto que o torna ainda mais extraordinário.
Tudo bem que o Cash era um ególatra, um homem que sobre o palco se tornava um deus diante de seus felizardos seguidores, mas o Johnny, como um observador de tudo que o ronda e de tudo o que ele já passou, deu uma atenção especial àquelas pessoas que conheceu em sua jornada, cada uma acrescentando um pouco à sua historia de vida e à sua experiência artística. Sempre falando dessas pessoas com carinho e cuidado, enaltecendo-os e tirando um pouco de seu protagonismo para dar a devida importância aos outros. São tantas pessoas que nem sei por onde começar. Familiares, amigos, músicos, companheiros de trabalho e é claro, suas inspirações. Uma das pessoas que achei mais fascinante de conhecer em meio às palavras do Johnny foi o Roy Orbison, artista que até então só sabia que cantava a canção Pretty Woman. Ele gasta boas páginas contando de sua amizade com ele, assim como também fala bastante da família da June Carter, que foi uma grande influência na música folk, dos membros de sua banda, homens que são como família para ele, e as pessoas que formaram seu caráter religioso e musical, em suma, aqueles que o fortaleciam no catolicismo e aqueles que plantaram a semente da música na cabeça do pequeno Johnny. Tudo isto em meio à comentários de sentimentos variados e histórias interessantíssimas, como por exemplo a criação da música Blue Suede Shoes, do Elvis Presley, ou uma aposta que ele fez com o Roy Orbison, algo um tanto simples, mas ainda assim marcante.
Navegando agora em águas densas, não há como falar desta biografia citando apenas as partes líricas ou divertidas, pois como já mencionei anteriormente, ele também foi um homem que errou muito em vários aspectos, mas teve um problema em sua vida que acarretou nos piores anos da vida dele: seu vício pela anfetamina – algo que é mostrado com certa sutileza no filme de 2005. Anos que, segundo ele mesmo, não foram apenas os piores de sua vida, mas também o levaram ao conceito de sobrevivência, recuperação e da esperança de redenção. Ele narra este episódio de sua vida com um naturalismo que é sentido. Este não é apenas um dos momentos mais densos do livro, mas também o mais marcante, pois ele se abre para o leitor e fala dos anos mais negros que já tivera em sua vida. Anos que afetaram não apenas o Cash, mas também as pessoas ao seu redor – inclusive, é neste mesmo capítulo que há a intervenção que mencionei anteriormente, um belíssimo momento, complemento. Felizmente as águas mais densas só perduram mesmo neste capítulo, fluindo às vezes através de outras rochas na vida do Johnny, mas tomando outras formas. Afinal, o que é uma vida sem erros e problemas?
Se você for um fã ávido do Cash, ou se possui apenas escuta algumas canções dele e tem certa curiosidade sobre como o livro trata a carreira dele – eu mesmo tive muito esta curiosidade, pois no filme trata bem superficialmente, mesmo gostando do Johnny e June –, eis a resposta para esta possível pergunta. A música é tocada por quase toda a obra, digamos. Seja nas mãos do Johnny, do Cash ou de outros músicos e amigos dele, a música está sempre presente na obra. Há o ascender de sua carreira na Sun Records, algo muito interessante, pois conhecemos um pequeno artista ainda nesta época. Há seus tempos de glória e de declínio, o que o fez pensar em inovações – ele fala até da ideia central de seus discos mais recentes, os American Recording. Há também seus projetos paralelos, algo mais curto do que o esperado, mas ainda sim foi uma excelente escolha do Johnny mencioná-los, como o Highwaymen – um reunião de quatro grandes artistas do country, eu recomendo fortemente que ouça, apenas se você gosta do gênero, claro. Há outro adjetivo que me veio em mente neste momento sobre este livro, completo, é uma obra completa. Quando chegamos na página 100, nós pensamos que já vimos muito sobre ele, mas ele nos surpreende cada vez mais com suas histórias que variam como uma montanha russa, algumas mais incríveis e outras mais comuns, por isso do sub-título desta resenha, citação de um grande amigo dele – também membro do Highwaymen.
Por fim, os momentos finais da jornada desta madrugada de terça-feira.
Quando jogaram no meu colo a ideia de resenhar este livro, logo disse que faria, sequer pensei duas vezes para isso, mas foi logo ao começar este texto que eu vi no que estava me metendo. Esta obra, sendo tão completa, abordando décadas de vida e carreira, além de abordar também a convivência do Johnny Cash com outras pessoas, me foi um desafio para esta resenha que você contempla. Um cavaleiro de armadura fosca em frente a um dragão rubro sobre seu tesouro, eu diria.
Mas aqui estou eu, um grande admirador deste grande homem, dentro ou fora dos palcos, colocando meu coração numa leitura que me foi uma experiência tão bela quanto ver um pôr-do-sol. Aliás, lendo tal livro eu até poderia me imaginar vento tal pôr-do-sol. Lembra-se quando mencionei sobre poder imaginar o próprio Johnny ao meu lado contando as histórias de sua vida? Então, é com um sorriso que digo que esta obra faz com que o leitor se encontre com o autor, como se eu e ele estivéssemos sentados numa varanda enquanto contemplamos o horizonte e escutamos a sinfonia que a natureza guarda àqueles que prestam atenção.
Caro leitor, se você mal escutou as músicas do Cash, mas gosta de uma boa história, este livro é para você. Acredito que você gostará de conhecer um tanto sobre este homem. Mas se você já o conhece e já o aprecia o grande Homem de Preto, eu diria que é uma leitura obrigatória. Há tanto neste livro que nesta resenha eu falei muito pouco, se comparado à totalidade do conteúdo, uma grande riqueza de detalhes, lições e trechos para ler e refletir. Bom, nada mais justo do que terminar esta jornada com um trecho do epitáfio musical deste homem extraordinário:
“Eu uso minha coroa de espinhos;
Sobre meu trono de mentiras.
Cheio de pensamentos quebrados;
Que eu não posso consertar.
Sob as manchas do tempo;
Os sentimentos desaparecem.
Você está em outro lugar;
E eu ainda estou aqui”.
Você já pode saber deste fato, mas vale a pena ressaltá-lo como um fechar com chave de ouro. O amor do Johnny por sua esposa era tanto, que após sua morte, em 2003, seu pesar foi tanto que gravou sua versão da canção Hurt, deixando muito claro no clipe como ele estava no momento, enfrentando com dificuldade a morte da esposa. Tanto que há um momento, quando ele canta o último verso do trecho citado acima, em que a câmera dá enfoque a um retrato do Johnny com a June Carter. Isto não é sobre o livro, mas isto é tão belo e triste que tive de mencioná-lo, principalmente pelo seguinte fato: Johnny Cash morreu poucos meses após a morte de June.
Mas ele sempre será imortal.
Só digo, Muuuuuito bom!