«LA POUPEE[1]» – um filme de Isabelle Christiane Kouraogo
O FESPACO 2019 (Festival Panafricano de Cinema e de televisão de Ouagadougou), escolheu o tema “MEMÓRIA E FUTURO DOS CINEMAS AFRICANOS” na 26ª edição, que coincide com o seu quinquagésimo aniversário. Como forma de homenagear o país anfitrião e as novas gerações de cineastas, procurarei destacar, numa leitura pessoal, os três filmes do Burkina Faso que concorrem na categoria “escolas africanas de cinema”. Aqui falaremos de um futuro insistentemente presente, onde jovens talentos como Isabelle Kouraogo e a sua equipa nos mostram uma visão do mundo, local e globalizado. «La Poupée» é, como nos diz a sinopse, uma curta-metragem de 14 minutos sobre uma jovem, Aya, que procura o pai, ao cabo de quinze anos de abandono e completa ausência. O abandono não é apenas afastamento, omissão, quebra de contrato afetivo e total ausência de referências. O abandono configura também uma noção de desrespeito por um dos compromissos mais primários do ser humano na vida adulta, o cuidado com os filhos, a educação, os valores a transmitir e a formação da personalidade. Estar ou não estar presente, ser ou não ser pai para além do acaso biológico, é uma questão que, não sendo exclusiva de África, afeta profundamente as nossas sociedades. A realizadora situa a história num ambiente intimista e carregado de meias-sombras, onde a figura da boneca, sentada numa prateleira alta, como se de uma fotografia se tratasse (ou de uma vaga lembrança), se impõe como protagonista.
Uma curta-metragem de ficção que passa uma mensagem com esta profundidade centra-se nos diálogos e no ambiente, e assim sucede neste caso. Quem é ou o que é, afinal, uma boneca? Uma menina-objeto que aguarda, quieta, que alguém lhe dê atenção e brinque com ela. Calada, discreta, passiva e agradável à vista. Não sabemos se olhamos para um brinquedo ou para uma jovem mulher que cresceu como pôde privada de uma referência paterna. Qualquer uma delas é manipulável, maleável, frágil e silenciosa. Aya faz parte daquele grupo de pessoas que pretendem esclarecer ou perceber uma parte da sua vida, uma parte importante que lhes foi negada. Outras meninas, no seu lugar, teriam preferido não retomar um passado doloroso e seguir adiante sem maiores questionamentos. Remexer nas dores de infância é um risco: o encontro com esse pai desconhecido pode ser a chave para entender uma ausência inexplicável e injustificada, como são todas as fugas em vida. Há um cheiro a náusea e a cobardia nessa partida cujas causas nunca foram desvendadas. Mas Aya (por intermédio de uma hipotética identificação com a mãe, essa figura omitida mas subentendida) pretende ir até ao fim, levando a farsa até ao limite da tensão emocional e do suportável.
Isabelle Kouraogo trata o tema do abandono paterno com segurança e respeito, acrescentando detalhes invulgares e inesperados a uma narrativa que é a realidade de muitos milhares de crianças. Os dois atores representam com eficácia e sobriedade as respetivas personagens e espelham bem todas as vivências e desejos que os habitam. A
equipa técnica tampouco deve ser esquecida (embora seja quase invisível), pois está na origem do resultado global; nomeadamente, neste caso, a responsável pela montagem (Maimouna Diallo), a quem cabe a tarefa de dar sentido ao material filmado e gravado elaborando uma estrutura narrativa coerente (supervisionada pela realizadora), Ousseynou Seck e Suleyman Oubelhaj, pelo grafismo original, e o cenógrafo (Zouhair Kassam), por criar uma atmosfera credível para o refúgio de um homem sem compromissos nem laços, a quem não preocupa passado nem futuro, mas apenas o momento presente.
Conheci uma jovem que chegou à idade adulta sem conhecer o pai. Até que alguém lhe disse: — Olha, estás a ver aquele homem ali a fumar? É o teu pai.
Ela ganhou coragem e abordou-o: — O senhor sabia que era meu pai?
Ao que o homem respondeu: — Sabia, sim, mas só há pouco tempo. Fiquei com vergonha de falar contigo, não sabia como é que ias reagir.
A jovem encolheu os ombros e esqueceu-o. Outra mulher viveu a vida toda sem que alguma vez o pai se tenha disposto a assumi-la ou a abraçá-la, apesar dos seus vários esforços, infrutíferos, ao longo de décadas. Um dia, quando ela fez 60 anos, vieram dizer-lhe que o pai tinha falecido. A mulher encolheu os ombros e esqueceu-o.
Aya, ao contrário, decidiu conhecer o homem que a tinha gerado, de nome Alexandre. Pai? Talvez seja preciso muito mais do que isso para sê-lo. Aya, a jovem mulher, Aya, a boneca, ou todas as crianças que cresceram órfãs de um pai vivo: talvez seja melhor encolherem os ombros e esquecê-lo.
Ficha técnica :
Título: «La Poupée» (A Boneca)
Género : Ficção
Língua : Francês
Legendas : Inglês
Suporte (Formato): 16/9
Duração: 13.50’
Ano: 2018
Realização : KOURAOGO Isabelle Christiane
Produção : ESAVM- École Supérieure des Arts Visuels de Marrakech
Equipa (resumo):
Direção de Fotografia: OUARRIRH Mourad
Engenheiro de som : RAFITOSON Tsisetraina
Montagem : DIALLO Maimouna
Atores principais :
AKA Yaba Annick
KOUNDOUNO Lamine
Biografia (resumida) e filmografia :
Após uma licenciatura em audiovisual, em Abidjan, Côte d’Ivoire, e 3 anos de experiência profissional, Isabelle Kouraogo integra, em 2015, a Escola Superior de Artes Visuais de Marraquexe (ESAVM- École Supérieure des Arts Visuels de Marrakech), na especialidade de realização.
Em 2015 obteve o 3º lugar do concurso de pitch organizado pela OIF durante o FESPACO.
Em 2017 foi selecionada como membro do júri Cantillon na 32ª edição do FIFF Namur.
Em 2018 realizou duas curtas-metragens, das quais uma ficção e um documentário.
[i] Ficha técnica, biografia da realizadora e prémios obtidos: informações gentilmente disponibilizadas pela cineasta.
[1] A BONECA
Faça um comentário