LADO B – de César Augusto de Carvalho

Data de leitura:                       01-01-2024 a 06-01-2024                             Nome: Luísa FRESTA

Ficha de leitura

Título:                                      LADO B

Autor:                                       César Augusto de Carvalho[1]

Editora:                                    LARANJA ORIGINAL ©

Coleção/ Edição:                    rosa manga

Ano de publicação:                 2023

Género literário:                      Contos

Número de páginas:               110

 

Resumo:

LADO B é um interessante mosaico de oito narrativas do multifacetado autor e pensador César Augusto de Carvalho. Algumas mais próximas do conto, outras de um género que convencionei chamar croniconto, pela sua proximidade com a atualidade e o mundo real.

Neste livro o leitor poderá ouvir o tom forte da denúncia e da crítica social, enfatizando o Brasil do passado recente e dos trágicos anos 60 do século XX, oscilando entre ditadura, repressão, silenciamento e branqueamento de crimes legalizados e ainda a intriga política, com enredos muito bem urdidos.

Algumas destas ideias são explicitadas e amplificadas pela Professora Ana Arguelho, no texto da badana. É, para além disso, uma narrativa universal e universalista, com alusões diretas e difusas, embora percetíveis. O livro relembra momentos trágicos da História coletiva dos brasileiros, oferece um conteúdo esclarecedor e envolvente, um posicionamento e uma visão política profundamente humanista. Estamos, diria eu, diante de boa literatura engagée, com tensão, empolgamento, que suscita curiosidade, revolta, desconcerto e mesmo alguns sorrisos.

Raramente teremos a menção clara de datas, locais, eventos, pessoas. Neste tipo de narrativa o leitor constrói o seu próprio eixo e grelha de interpretação.

LADO B, o conto de abertura, contrapõe o instinto à razão, evoca a sensação física de Liberdade, essa palavra maiúscula à qual tendemos sempre a agarrar-nos. Excecionalmente o narrador menciona alguns locais como Londrina, no Paraná, e São Paulo.

Segue-se ESTOU SEGURO!, uma bela crónica literária que reflete sobre terrorismo de Estado nos anos setenta. Um honesto e pacato cidadão (“ô do interior”) é o protagonista, daqueles que confiam no Estado por princípio e que costumam ser as primeiras vítimas de regimes totalitários. “O sistema ‘protege-nos’, mas quem nos protege do sistema?”, li em tempos num muro da cidade onde vivo, bem longe do Brasil. Mais uma vez os locais são referidos indiretamente (cidade grande ou cidade distante da capital).

TEMA DE REDAÇÃO: O GOLPE é o título seguinte. Mas de que golpe falamos? Passado, presente, futuro? Quando os alunos são convidados a pronunciar-se sobre um tema sensível da sua História talvez o que se pretenda seja apenas que reproduzam sensatamente a versão oficial que lhes foi ensinada e não que reflitam sobre o que está a acontecer ao/no seu país. A história é sempre contada pelo vencedor, a versão aceite é a do pensamento único, que impera, cada vez mais, mesmo nas modernas democracias. Um conto muito curto que deixa em aberto várias possibilidades de desenvolvimento e interpretação.

Em UM HOMEM DE BEM temos a descrição de uma cela e as circunstâncias que conduziram o narrador a esse local. Um homem sombra, poder sombra, um delator, um candidato a chantagista, que pode servir o sistema, mas que, a breve trecho, se torna incómodo. Uma pessoa que se apresenta como defensora da família, das tradições e dos bons costumes, mas que na prática demonstra que tudo não passa de um slogan decorado que não tem ligação com os valores que apregoa.

O EXTERMÍNIO lembra uma novela, pela estrutura e ritmo, com a apresentação rigorosa de cada personagem: A MÃE, A AMANTE, O AMIGO ERMITÃO, O BARQUEIRO e O INVESTIGADOR. O Covid 19 é apenas o fio condutor de uma intriga política internacional, que inclui negócios ilícitos, com raízes e repercussão no Brasil. Não são referidas figuras públicas pelo nome, mas ainda assim são identificáveis pelo contexto: como habitualmente, uma ficção inspirada na realidade. É uma história tentacular, muito excitante, com relações paralelas até no plano sexual e afetivo. Locais reais, locais ficcionados, Neverland e Madagáscar, é tudo quanto sabemos sobre os territórios da ação. Como na Terra do Nunca (a ilha fictícia de Peter Pan, que encaro aqui como um território experimental de criação artística) tudo pode acontecer, o leitor não se espantará com as peripécias absolutamente inesperadas a que está exposta a figura de proa desta narrativa.

Trata-se aqui de um conto que caracteriza a duplicidade do ser humano, os disfarces sociais. Este texto também põe em causa a noção de paternidade, o compromisso e a maneira como é vivida e sentida; e a diferença abissal entre a família assumida publicamente e relações paralelas, que, mesmo gerando descendência, viverão sempre num espaço escuro e obscuro da memória, sujeitas a ínfimos fragmentos de atenção.  O PORTADOR é ainda uma espécie de epílogo do que considero a novela anterior.

CUMPRINDO O DEVER dá voz à angústia da espera e da incerteza, quando se recebem instruções e ordens indiscutíveis e é acionado o instinto de autopreservação.

“(…) As instruções eram simples, em linguagem direta e com alguns erros de português. Li-as tanto que as memorizei:

Proibido qualquer comentário sobre as notificação;

Proibido falar com as pessoa;

Andar na fila em passos militar;

Qualquer violação é crime com pena máxima, sem direito a processo. (…)”

P.83

Eis uma imagem clara da fragilidade do indivíduo, sem recurso a qualquer apoio legal, completamente vulnerável, à mercê de outrem, lembrando a importância do Estado de Direito, do respeito das normas e direitos fundamentais pelos cidadãos e pelas instituições.

Já UM SÉCULO DEPOIS aproxima-se da ficção científica. O leitor vai antever um mundo de pesadelo, algures num futuro sombrio – nem por isso muito distante -, onde o controlo das pessoas é prática sistematizada. Estas sobrevivem entre o desejo de se debater, organizando-se na clandestinidade, e uma infravida nauseabunda marcada por temperaturas altíssimas, quase incompatíveis com a vida humana e a escassez de recursos vitais, como a água (a qual é já, quase e apenas, uma saudosa memória).

LADO B afigura-se-me como um lembrete literário e um exercício dialético sobre as ditaduras (inclusive as eleitas por processos democráticos), o amor, as relações tóxicas, vidas paralelas, o individualismo, a candura e o alheamento. Pode ser que um dia destes possamos também encontrar algumas destras narrativas transformadas em guião de filmes, pois parece-me que a linguagem é eminentemente cinematográfica.

Retrato do autor, por Luísa Fresta (2025)

 

[1] Biografia do autor: “Sociólogo e historiador, o escritor e poeta Cesar Augusto de Carvalho publicou seus livros de poemas Proesia, lançado em 2014, edição independente, e Lavras ao Vento, pá, em 2017, pela Editora Benfazeja. Em 2008 lançou, pela editora Unesp, Viagem ao Mundo Alternativo: a Contracultura nos Anos 80, um relato de viagem ao mundo das comunidades alternativas.

De 2010 a 2014 roteirizou e dirigiu o programa Estação Raul, veiculado pela rádio UEL FM 107,9 de Londrina, PR, dedicado à vida e obra de Raul Seixas, dando origem ao seu livro Toca Raul e ao CD Conversas na Estação, novela ficcional, cuja história de amor é permeada pela temática raulseixista (…).”

Fonte: PATUÁ

Nota: confrontar também com a biografia do autor que consta da badana do livro.

 

 

 

 

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Sobre Luisa Fresta 39 Artigos
Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Desde 2012 assina crónicas e artigos de opinião em jornais culturais, revistas e blogues de Angola, Portugal e Brasil, essencialmente sobre livros e cinema africano francófono e lusófono. Esporadicamente publicou em sites ou portais culturais de outros países como Moçambique, Cabo Verde e Senegal. Em 2021 e 2022 traduziu O HOMEM ENCURRALADO e ESPLANADA DO TEMPO, ambos do poeta brasileiro Germano Xavier (edição bilingue português-francês/Penalux). Em 2022 ilustrou o poemário infantojuvenil DOUTRINA DOS PITÓS, do poeta angolano Lopito Feijóo (Editorial Novembro). Desde 2020 mantém um grupo virtual intitulado ESCOLA FECHADA/ MENTE ABERTA, criado no início da pandemia, destinado a divulgar literatura infantojuvenil e artes plásticas, nomeadamente ilustração, com especial incidência no universo lusófono e francófono. O principal objetivo é consolidar os hábitos de leitura das crianças, estimular a leitura em família e o gosto pelo desenho; e aproximar escritores e ilustradores de leitores e da comunidade escolar. Tem textos dispersos por antologias, alguns dos quais integraram projetos pro bono, e outros premiados em Portugal e no Brasil, desde 1998; assim como um livro de poesia vencedor do prémio literário Um Bouquet de Rosas Para Ti, em Angola, atribuído pelo Memorial António Agostinho Neto (2018). Curiosidade: o poema Casa Materna, que dá título ao livro (originalmente designado por Casa ambulante), foi distinguido com o 2º prémio de poesia internacional Conexão Literária (Câmara Municipal de Divinópolis/Brasil) quando a obra já se encontrava em processo de edição. OBRAS DA AUTORA: Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; Março entre meridianos (poesia, 1º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019; A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; Sapataria e outros caminhos de pé posto (contos), Editorial Novembro, 2021; Burro, Sim Senhor! (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021; Casa Materna (poesia), Editorial Novembro, 2023; A Idade da Memória (infantojuvenil, contos inspirados na poesia de Agostinho Neto. Coautora: Domingas Monte; ilustrações: Júlio Pinto), Mayamba Editora, 2023; No País das Tropelias e Desventuras (Coleção Capitão/ infantojuvenil), Editorial Novembro, 2024.

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