MASINGITA OU A SUBTILEZA DO INCESTO, de Juvenal Bucuane

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Data de leitura:                        23-06-2024 a 23-06-2024                             Por Luísa FRESTA

Ficha de leitura

Título:                                      MASINGITA OU A SUBTILEZA DO INCESTO

Autor:                                       Juvenal Bucuane

Editora:                                    Editorial Fundza ©

Coleção/ Edição:                    –

Ano de publicação:                 2022

Género literário:                      Novela

Número de páginas:               83

Resumo: Juvenal Bucuane é um autor versátil e conceituado de Xai-Xai (Moçambique), cuja obra tenho vindo a acompanhar nos últimos anos. Tem um vasto currículo na literatura, com mais de vinte obras editadas até ao momento.  Já tive o privilégio de prefaciar o seu livro de poesia intitulado CELEBRAR A VIDA – poemas de recesso e de esperança, mas ainda não tinha mergulhado na sua prosa. Encontrámo-nos e conhecemo-nos há uns anos em Lisboa, através do CEMD[1] e do escritor, também moçambicano, Delmar Maia Gonçalves.

Sobre MASINGITA (lê-se “massinguita”, segundo me disse o autor), é um livro surpreendente, que eu gostaria de classificar como “um murro no estômago”, se não fosse tão cliché. É uma novela muito bem urdida sobre o tema do incesto e, segundo pude perceber, baseia-se num caso real. Como diria outro grande escritor, o angolano Óscar Ribas, no seu romance autobiográfico: TUDO ISTO ACONTECEU.

Os amores incestuosos e o conceito de incesto têm colhido a atenção de autores[2], editores e leitores, desde Eça de Queirós (OS MAIAS) até Paul Auster (INVISÍVEL), passando por Anaïs Nin, Sade e Mário de Sá Carneiro, entre outros.

A obra de Juvenal Bucuane não trata esse tema, apenas se torna mais evidente por ser um assunto praticamente tabu, se não na literatura, na sociedade em geral. É um tema incómodo, desconcertante, desconfortável, dilacerante, até. O escritor aborda-o, no entanto, com muita sensibilidade, inteligência e delicadeza, confirmando a sua qualidade de excecional narrador.

Um caso de vínculo carnal entre mãe e filho soa a algo sacrílego, impuro, que lembra as tragédias gregas. A generalidade das pessoas emite espontaneamente um juízo moral intuitivo, condenatório, pois o facto em si causa aversão, pela sua crueza e estranheza.

A Mãe é figura sagrada em todas as sociedades e só os grandes mestres da literatura conseguem tocar nestes temas como o faz Juvenal Bucuane ou a franco-marroquina Leïla Slimani, com o seu romance Chanson Douce[3] (este último não discorre sobre incesto, mas reflete sobre um crime hediondo. A comparação refere-se apenas à dureza de ambos os temas e à maneira magistral como são explorados literariamente pelos dois autores).

A relação carnal entre parentes próximos é sempre avaliada como algo indigno ou imoral. Trata-se de um interdito, do foro do inominável e impensável, o que retrata a novela MASINGITA. E, no entanto, acontece. Basta fazer uma rápida varredura da imprensa para nos apercebermos disso. Marta, a protagonista da narrativa, é uma mulher vítima de abandono conjugal, não negociado, não explicado, quando o casal já tinha um filho adulto e com descendência própria. É uma mulher apagada e doce, habituada a sofrer e calar, a não questionar o marido sobre nada, a não o incomodar, que de repente se vê sozinha, à mercê da maledicência e da curiosidade da vizinhança.

Tenta reconstruir-se e sustentar-se e, a partir daí, a magia da literatura conduz o leitor a um redemoinho do qual não se livra até ao último parágrafo do livro. Li-o num domingo apenas, onde me senti de novo adolescente, lembrando os tempos em que não largávamos a leitura nem para ir comer, nem para as tarefas domésticas.

Nesta novela cruzam-se os olhares da História, da Antropologia e da Literatura. A narrativa passa-se em bairros de Maputo, nomeadamente o histórico Nlhamankulu/ Chamanculo (bairro ou distrito urbano/municipal).

Relembremos o que é denominado incesto pelos dicionários e pelo senso comum: a união sexual ilícita entre parentes consanguíneos ou afins, relação sexual entre pais e filhos, entre irmãos biológicos ou adotivos, geralmente condenada pelas leis morais, pela religião, pela sociedade, e, por conseguinte, um vínculo íntimo impuro.

Em MASINGITA há algo de muito curioso: os amantes incestuosos não deixam de manter uma relação de mãe e filho, que prevalece diante de terceiros, mas também, por vezes, no contexto doméstico e mais íntimo, na forma de tratamento, na linguagem e nas interações triviais e quotidianas.

Na literatura e na mitologia, podemos distinguir, entre os malogrados protagonistas destas tramas, os que não sabiam e os que sabiam. Esse detalhe, que é muito mais do que um simples detalhe, faz uma diferença colossal, nomeadamente no que se refere à perceção social e à auto culpabilização.

Na mitologia fenícia e na mitologia grega existem vários episódios de relações incestuosas. O rei Édipo, que matou o seu pai, sem saber que era seu pai, e se casou com a mãe, Jocasta. A história teve um desfecho dramático, como se sabe.  O complexo de Édipo foi o termo criado por Freud, inspirado nessa tragédia: cada leitor ajuizará se a novela em causa aborda a questão do incesto sob este ponto de vista. Lembremo-nos também do rei Teias e sua filha Mirra, que geraram Adónis. E ainda de Zeus, divindade suprema dos gregos, que viveu um romance com a sua irmã Demetra, do qual nasceu uma filha, Perséfone. Histórias que ficaram para a posteridade como aberrações e marcas de tragédia.

Outrossim, podemos cingir-nos à descendência de Adão e Eva segundo a Bíblia. Não havia, ao que sabe, mais ninguém na face da Terra a não ser os descendentes de Adão e Eva. As conclusões serão, portanto, óbvias, para quem se dispuser a refletir sobre o assunto, a não ser que considere a génese do mundo pelo prisma religioso e que suponha que os textos sagrados não obedecem à aritmética profana da vida.

Não obstante, subsiste uma implacável censura social, religiosa e legal na maioria dos países, quanto ao incesto.  Grande parte das culturas condena a união carnal consanguínea particularmente entre mães e filhos. É um inultrapassável tabu, justificado também pelo caráter sagrado da Mãe.

Desde há muito que existe também a consciência global de que gerar filhos com pessoas do mesmo clã familiar pode potenciar malformações. Os riscos para a descendência são reais devido à herança de genes recessivos responsáveis por doenças raras. Este é o aspeto mais concreto quanto aos efeitos nefastos das relações de consanguinidade, meticulosamente trabalhados nesta novela pelo autor.

Embora o enredo de base seja uma situação concreta que envolve os protagonistas do escândalo, as famílias de origem e a comunidade em que estão inseridos, gostaria de deixar aqui também um apontamento sobre certas culturas onde casamentos endógenos, neste caso, entre primos, são aceites e até encorajados.

Algumas comunidades e etnias defendem que essa prática favorece a pureza da descendência e preferem-na também por questões patrimoniais, ou seja, para evitar a dispersão dos bens.

Cerca de 10% das famílias em todo o mundo seriam constituídas por casais de primos. Estou a pensar especificamente na etnia Peul e no mundo árabe-muçulmano, no qual esta prática ainda subsistiria por motivações de ordem social, cultural e económica e por via das tradições. Nestes universos, e em muitos outros, os casamentos endógenos continuam a ser frequentes. Podemos discutir se se trata ou não de um mito, se os dados são atuais, se se referem às grandes urbes ou às zonas mais rurais, mas as fontes consultadas indicam que esses costumes ainda mantêm alguma vitalidade.

No caso relatado por Juvenal Bucuane, as motivações são de outra índole. Fruto do acaso, da embriaguez, das circunstâncias, da efervescência hormonal, da solidão profunda, da carência ou de mecanismos psíquicos tortuosos e inconscientes que o leitor poderá sopesar.

Resta-me apenas observar que a novela está contada de maneira a viciar o leitor do princípio ao fim. Qualquer pessoa que goste de ler perceberá a sensação de sermos sugados para dentro de uma narrativa. A história faz-nos pensar, o que, só por si, já é um feito histórico nos tempos que correm, onde o ser humano está cada vez mais mecanizado, padronizado, formatado e alheio a qualquer tipo de pensamento próprio, sobre o que quer que seja.

 

 

Fontes consultadas acessoriamente:

https://etimologia.com.br/incesto/

https://www.jeuneafrique.com/138136/societe/les-10-piliers-de-la-pulanit/

 

[1] Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora

[2] Outras ocorrências, a título de exemplo:

VERBEEK, Léon – Contes de l’inceste, de la paranté et de l’alliance chez les Bemba : (République démocratique du Congo) / Léon Verbeek. – Paris : Éditions Karthala, 2006. Fonte : https://www.karthala.com/tradition-orale/1635-contes-de-linceste-de-la-parente-et-de-lalliance-chez-les-bemba-rdc-9782845867260.html

 

Sobre Luisa Fresta 27 Artigos
Luisa Fresta Nascida em Portugal, viveu infância e adolescência em Angola. Dedica-se sobretudo à escrita, sob a forma de contos, crónicas e poemas. Escreve regularmente em vários jornais, revistas e sites. OBRAS DA AUTORA: BURRO, SIM SENHOR! (Editorial Novembro, 2021), SAPATARIA E OUTROS CAMINHOS DE PÉ POSTO (Editorial Novembro, 2021), A FABULOSA GALINHA DE ANGOLA (Editorial Novembro, 2020), MARÇO ENTRE MERIDIANOS, reedição (Livros de Ontem, 2019- Portugal) e primeira edição (MAAN, 2018 - Angola/ Prémio "Um bouquet de rosas para ti"), CONTEXTURAS (Livros de Ontem, 2017)

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