NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO, de Luís Bernardo Honwana

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Data de leitura:                        09-05-2024 a 15-05-2024

Ficha de leitura/ resenha: por Luísa Fresta

Título:                                      NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO

Autor:                                       Luís Bernardo Honwana[1]

Editora:                                    Maldoror ©

Coleção/ Edição:                    –

Ano de publicação:                 2024

Género literário:                      Conto

Número de páginas:               135

Resumo: Chego a esta obra de Luís Bernardo Honwana com 60 anos de atraso. O livro foi publicado pela primeira vez no ano do meu nascimento. O autor, também jornalista (já na altura da publicação do livro), estudou desenho e pintura durante algum tempo, na juventude.

“(…) O ano de 1964 foi certamente marcante para Luís Bernardo Honwana. Com 22 anos publicou “Nós Matámos o Cão-Tinhoso”. Obra polémica, nos seus sete contos estão presentes o tom subversivo, a denúncia do colonialismo, as tensões sociais, o racismo. O livro seria prontamente apreendido pela PIDE, e tornar-se-ia uma das obras mais importantes da literatura africana (…)”.

Excerto da badana/ orelha

Nós matámos o Cão-Tinhoso, o texto de abertura, assemelha-se a uma novela, com as suas intensas quarenta e sete páginas. O narrador autodiegético, Ginho, é uma criança, como acontece na maioria dos outros contos.

Encontramos uma caraterização muito explícita do bullying e da rejeição, da inocência cruel das crianças, e das atitudes manipulatórias dos adultos em relação a elas. É um texto duro sobre a violência, inata ou latente. E igualmente uma corajosa denúncia do racismo e do preconceito social no contexto do colonialismo, que envolve humilhações sistemáticas.

O leitor observará que os mais vulneráveis são aqui invariavelmente rebaixados (as crianças mais sensíveis ou os animais, como o próprio Cão-Tinhoso). O sistema de ensino autoritário desnuda, por outro lado, alguns comportamentos das crianças, nesta narrativa, quando entregues a si mesmas.  A desresponsabilização, a cobardia, a diluição da culpa no grupo, o efeito de mimetismo, no quadro da violência.

“(…) O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pêlos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém gostava dele porque era um cão feio. Tinha sempre muitas moscas a comer-lhe as crostas das feridas e quando andava, as moscas iam com ele, a voar em volta e a pousar nas crostas das feridas. Ninguém gostava de lhe passar a mão pelas costas como aos outros cães. Bem, a Isaura era a única que fazia isso (…)”.

P.9

As atitudes cruéis podem significar também uma forma de aceitação mútua, como um ritual de iniciação. Já o reconhecimento das lideranças fracas surge com base na intimidação; a empatia e a humanidade, adulteradas ou incompreendidas socialmente, são frequentemente percebidas como expressões de fraqueza.

Para além do Cão-Tinhoso há outros animais que ajudam a criar o ambiente. O Bobí, o Leão, o Lobo, o Mike, O Simbi, a Mimosa e o Lulu. E são muitos os miúdos: Ginho, ou Toucinho (narrador), a menina Isaura, Quim, Gulamo, Zé, Xangai, Carlinhos, Issufo, Chico, Faruk, Telmo, Chichorro e Norotamo. A Isaura chama-lhe o cãozinho, ao Cão-Tinhoso. Os adultos são senhores ou senhoras, Senhor/a Professor/a, Senhor Administrador, Senhor Chefe dos Correios, Doutor da Veterinária, Senhor Duarte…

O narrador refere alguns jogos que poucas crianças do século XXI devem conhecer: sete-e-meio[2], limpa-quatro-bolas e sueca[3]. E usa expressões locais ou arcaicas, do ponto de vista do leitor de hoje: Suca[4] daqui! / leiteira = sorte/ bera= reles, sem qualidade, que parece bom, mas não é/ zuca-zuca… quanto às armas referidas, Ponto 22 de Um Tiro e calibre 12 de Dois Canos, qual delas existirá ainda?

Nhinguitimo é o segundo maior conto. O vento Sul varre instantaneamente a poeira que enche o ar e resume este texto, tão doloroso e intenso como os demais. Há uma referência geográfica, as águas do Incomáti (um rio internacional que nasce na África do Sul e desagua no Oceano Índico, na parte norte da Baía de Maputo).

O conto traz-nos vários tópicos e cenários que se cruzam: as machambas (terrenos de cultivo/lavras), as sementeiras, as rolas, mas sobretudo a expropriação das terras, ou a injusta apropriação legitimada pela prática e pela lei. Paira no ar um crescendo de revolta, um prenúncio de tragédia. A ténue fronteira que separa a sanidade mental da loucura esbate-se abruptamente. Assim, a raiva e a frustração, levadas ao limite, dominam o ambiente.

O conto identifica vários comportamentos comuns naquela conjuntura: a troça sobranceira e persistente, as posições desiguais e antagónicas no período colonial. Quem determina o tom, o ritmo, os temas e os desfechos das relações e das conversas entre negros e brancos?

Dina talvez seja o único texto contado por um narrador heterodiegético. O trabalho agrícola, também aqui, dá o mote à história; o leitor perceberá que se trata de um tipo de servidão muito próxima da escravatura. O capataz implacável multiplica ordens desumanas, ignora as fragilidades do corpo, a fome, o cansaço, a doença: nas machambas trabalha-se em condições deploráveis. A humilhação sistemática unilateral é a única forma de comunicação deste ser abjeto e obsceno.

Madala e a filha Maria são outros atores essenciais neste conto com grande tensão psicológica, que conta ainda com as vozes dos camponeses n’Guiana, Muthakati, Tandane, Djimo, Muthambi, Filimone.

A lúgubre personagem do capataz personifica o abuso de autoridade, desonra própria e dos trabalhadores sob o seu comando; desrespeito cabal pela mulher, nomeadamente a mulher negra ─ objeto/fêmea descartável ─ e pela condição de pai. O texto propõe uma reflexão sobre a prostituição numa lógica de poder.

O capataz sujeita os homens a um tratamento indigno, cruel, aviltante, mostra-se cínico e arrogante. Trata-se de sujeição, num ambiente de revolta iminente, grande tensão à flor da pele, repressão e tristeza, mas também de solidariedade e empatia.

“(…) Com uma expressão cheia de dureza, Madala relanceou o olhar pelas fisionomias ansiosas que o cercavam. 

A garrafa estava toda suada e o vinho era de um amarelo sujo, avermelhado. Madala bebeu de uma única vez, deixando que uma boa parte lhe molhasse as barbas e lhe escorresse pelo pescoço. Depois devolveu a garrafa vazia ao capataz. (…)”.

P.78

Acessoriamente refira-se que o livro contém um glossário com quinze termos. Alguns, como machamba, são relativamente conhecidos entre não moçambicanos, outros, como kuka (que provavelmente deriva de cook) são intuitivos. Os restantes serão mais locais e, uma vez que no livro existem expressões ou alusões às línguas swazi, changane e ronga, é de prever que esses termos possam ter origem nestas ou noutras línguas faladas em Moçambique.

Esta obra intensa de Honwana inclui ainda outras histórias descritas por uma criança que nelas participa, em que se repetem algumas personagens, pessoas ou animais, o que leva a supor que tenham contornos autobiográficos.

Em Inventário de imóveis e jacentes, são frequentes as menções ao Papá e à Mamã, ou à Tina, Gita, Lolota, Nelita, Carlinha, ao Madunana, Nandito e Joãozinho. Algumas destas figuras participam de outras narrativas, como Totó, o cão.  O texto é bastante descritivo, desde logo no título. Fala-nos sobretudo do que costumava acontecer, mas não necessariamente do que aconteceu. E lembra revistas da época: Life, Times, Cruzeiro, Reader’s (algumas das quais ainda existem).

Papá, cobra e eu retrata também cenas domésticas de um tempo em que a ruralidade se fundia com o meio urbano, muitas casas estavam cheias de crianças e tinham quintais, alguns com capoeiras. Estamos em Moçambique, por volta dos anos 60 do século passado. Para além de temas já bem vincados na generalidade dos contos (a revolta contida, o medo calado, a submissão, a soberba) neste texto, como em Dina, destaca-se a importância da dignidade de um pai perante a família.

Também se faz alusão aos jogos de sedução espontâneos, evidenciando o recato das moças, o tímido atrevimento dos moços, a vigilância discreta e austera das mulheres adultas ou mais velhas: retrato de uma época e das suas interações próprias, quer geracionais, quer entre homens e mulheres. Voltamos a encontrar personagens que se desdobram. Ao Totó e ao Lobo juntam-se outros animais, as galinhas e a cobra que se enroscou no título. Mas a cobra está longe de ser o único predador.

À época existia, frisa o narrador, uma espécie de medicina preventiva de Mãe, que permitia despistar anemias e parasitoses, com diagnósticos caseiros e certeiros.

No conto As mãos dos pretos a criança que narra exemplifica, com cândido humor, mitos, convicções de fundamentação difusa e crendices populares. Também aqui se alude, como noutros textos, à escravatura e ao colonialismo, temática central e unificadora da obra. Como leitora, noto igualmente que existem diversas formas de tratamento. Algumas personagens são referidas por Senhor Antunes, Dona Dores, ou Senhor Padre (a quem se dirigem as formas de tratamento formal?).

“(…) Para a capa e para ilustrar as histórias aproveitaram-se fragmentos de desenhos que a Bertina [5] tinha feito sem conhecer os meus escritos (…)”

Nota do autor à primeira edição

Os colonizados, vistos pelo narrador-criança, são normalmente mencionados apenas pelo seu nome, sem outros “adornos”. O conto é, sem dúvida, uma aula magistral sobre humanidade e igualdade de todos os seres humanos.

A velhota será porventura a única história contada por um adulto, narrador autodiegético.

“(…) Eu precisava de ir para casa. Ia comer arroz e caril de amendoim como eles queriam que fizesse, mas não para encher a barriga. E precisava de ir para casa para encher os ouvidos de berros, os olhos de miséria e a consciência de arroz com caril de amendoim (…)”.

P.83

Sobressai o tema da violência, mas neste caso destaca-se a figura doce, discreta e forte da matriarca, os laços familiares e o alheamento inocente das crianças, cujas brincadeiras e diálogos à hora da refeição nos mostram cenas familiares triviais apenas na aparência. Evidencia-se a ideia de pobreza e de fome visceral. O narrador parece depreciar-se a si mesmo, vendo-se pelos olhos do opressor. A consciência deturpada de uma suposta inferioridade, aniquila-o.

Termino com as palavras do próprio autor:

“(…) Não sei se realmente sou escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionam intimamente comigo ou traduzam factos que me pareçam decentes. Este livro de histórias é o testemunho em que tento retratar uma série de situações e procedimentos que talvez interesse conhecer.

Chamo-me Luís Augusto Bernardo Manuel. O apelido Howana não vem nos meus documentos (…)”.

Nota do autor à primeira edição

Luís Bernardo Howana
Luís Bernardo Howana

 

[1] Biografia do autor: “Luis Bernardo Honwana nasceu na então cidade de Lourenço Marques (Moçambique) em 1942 e cresceu em Moamba, pequena cidade do interior onde seu pai trabalhava como intérprete. Aos 17 anos passou a viver na capital da colónia. Aí estudou e aí se iniciou precocemente na actividade jornalística. Apoiou a luta pela libertação, foi preso em 1964 e ficou encarcerado por três anos.
Em 1969, em pleno colonialismo, e com a guerra colonial no auge, Nós matámos o Cão-Tinhoso é publicado em língua inglesa e obtém grande divulgação e reconhecimento internacional.
Após a independência do seu país, desempenhou diversos cargos políticos chegando a ser Ministro da Cultura.”

Fonte: https://www.wook.pt/livro/nos-matamos-o-cao-tinhoso-luis-bernardo-de-honwana/1021205

[2] Jogo de cartas no qual cada um dos parceiros, ao ser-lhe distribuída uma carta, pede as necessárias para se aproximar ou atingir sete pontos e meio, sem exceder este número.

Fonte: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/sete-e-meio

[3] Espécie de jogo de bisca com quatro jogadores, em que cada parceiro recebe dez cartas.

https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/sueca

[4] Interjeição utilizada para expulsar alguém ou para exprimir reprovação ou rejeição. Do changana sukà!, «idem».

https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/suca

 

   [

5] Bertina Lopes, descrita como “ilustradora dialogante” da primeira edição da obra.

Fonte: https://rcl.fcsh.unl.pt/index.php/rcl/article/view/125

“Bertina Lopes (Maputo, 11 de julho de 1924 – Roma, 10 de fevereiro de 2012) foi uma pintora e escultora italiana nascida em Moçambique. A arte de Lopes é caracterizada pela profunda sensibilidade africana com cores saturadas, composições corajosas de figuras semelhantes a máscaras e formas geométricas. Lopes foi reconhecida por destacar ’a crítica social e o fervor nacionalista que influenciaram outros artistas moçambicanos de seu tempo’ “.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bertina_Lopes

“Pintora e escultora moçambicana nascida em Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique.

Filha de pai português e de mãe moçambicana, terminou os seus estudos secundários em Lisboa, onde se formou em pintura e escultura pela Academia Superior de Belas-Artes”.

Fonte: https://www.infopedia.pt/artigos/$bertina-lopes

 

 

Sobre Luisa Fresta 27 Artigos
Luisa Fresta Nascida em Portugal, viveu infância e adolescência em Angola. Dedica-se sobretudo à escrita, sob a forma de contos, crónicas e poemas. Escreve regularmente em vários jornais, revistas e sites. OBRAS DA AUTORA: BURRO, SIM SENHOR! (Editorial Novembro, 2021), SAPATARIA E OUTROS CAMINHOS DE PÉ POSTO (Editorial Novembro, 2021), A FABULOSA GALINHA DE ANGOLA (Editorial Novembro, 2020), MARÇO ENTRE MERIDIANOS, reedição (Livros de Ontem, 2019- Portugal) e primeira edição (MAAN, 2018 - Angola/ Prémio "Um bouquet de rosas para ti"), CONTEXTURAS (Livros de Ontem, 2017)

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